sexta-feira, 9 de abril de 2021

Astroanedotário: um tributo aos “filhos de Urânia”

No passado, o ofício de astrólogo exigia não só conhecimentos de astronomia, mas também grande dose de coragem e audácia.

Texto de Bira Câmara

Rotulada por Franz Cu­mont co­mo a “mais persistente alucinação do homem”, “puta da Ba­bi­lônia” nas palavras de An­thony West e Gerhard Toon­der, “filha tola e infame da astronomia” por Kepler, “da­ma desonrada” segundo o escritor Walter Scott, são muitos os adjetivos recebidos pela as­tro­logia por parte de seus ad­versários e detratores. 

No entanto, a ver­dade é que ela tem atravessado os séculos sem perder o crédito, pelo menos en­tre o povão, e não é sem motivo que Rudolf Thiel afirmou ser a astrologia o movimento espiritual mais bem sucedi­do de todos os tempos. Por mais que os astrônomos a reneguem, os céticos a escarneçam e os religiosos esper­neiem à sua menção, ela continua de pé desafiando o tempo e sobrevivendo até mes­mo aos astrólogos ignorantes, aos fabri­cantes de horóscopos de jornais, aos seus detratores e, sobretudo, aos misti­cóides que – sem nenhum conhecimento astrológico – apelam para ela para justificar suas profe­cias esta­pafúrdias.

Urânia, musa da astrologia,
da astronomia e da geometria,
rainha dos céus, representada
com um globo numa das mãos

Estudada e praticada no passado por sábios, religiosos, senhores da guerra e até cé­sares, a astrologia produziu um riquíssimo anedo­tário que até agora ainda não foi de­­vidamente compilado. Obras sobre história da astrologia há muitas, mas nenhuma que eu saiba centrada apenas no seu lado anedó­tico. O Astro­ane­dotário não se propõe a ir mais longe do que isso e não tenta, portanto, fazer um inventário da história da astrologia no sentido acadêmico ou dentro de um rigor histórico. Deixo isso aos eruditos; meu interesse é pela lenda, pela ficção, pela curiosidade, pelo insólito. A história da vida dos grandes astrólogos do passado se mistura ao fantástico e ao maravilhoso, como podemos ver nas len­das de Michael Scot e de Albuma­sar. Elas estão espalhadas pe­los livros de história, em au­tores co­mo Sue­tô­nio, Tácito, Dion Cassius, Plí­nio, Dio­doro da Si­cília, Plutarco, Heró­doto, e tantos outros; gente que viveu numa época em que os historiadores ainda não haviam pen­sado em cometer uma lobotomia na História e apagar de sua memória qualquer referência à astrologia. Mas quem os lê hoje em dia?

Clichê profético

Não nos cabe julgar a veracidade das lendas e episódios envolvendo astrólogos e adeptos desta velha arte. Quando muito, aqui ou acolá, podemos arriscar alguma conjec­tura, imaginar que os fatos foram distor­cidos e revestidos com o manto da fantasia. Mas vale o registro. Notamos em muitas predições um clichê característico, que se repete ao longo do tempo com mudanças de tem­po e de lugar. Assim, astrólogos cal­deus previnem Alexandre que ele en­­contraria a morte se entrasse na Ba­bi­lô­nia; o adivinho adverte Júlio Cé­sar para tomar cuidado com “os idos de Março”; outro alerta Ju­liano a temer os “cam­pos frigios”; a Frederico II, Michael Scot profetiza que encontraria a morte “debaixo de uma flor e uma gra­de de ferro”; Catarina de Mé­dicis é aler­tada para evitar Saint Ger­main; e assim por diante...

Poderíamos suspeitar de predições feitas a pos­te­riori, arranjadas pelos cronistas para que se cum­prisse o cli­chê profético. Ou, também, por que não apelar para a neu­rolin­guís­tica e supor que uma pro­fe­cia feita por alguém que tenha o status de adivinho possa ficar en­rai­zada no subconsciente da pessoa, fazendo com que ela corra de encontro ao seu destino? Esse tipo de predição, na verdade, tem pouco ou na­da a ver com previ­são astrológica e parece mais produto de algum tipo de clarividência ou pre­monição, obtida por outras técnicas. É sabido que muitos astrólogos do pas­sado usavam também outras formas de adivinhação como o arus­pi­cí­nio, a quiromancia, a necro­man­cia. O nome “cal­deu”, dado aos praticantes da astrologia, estendia-se a um amplo leque de gente que abrangia adivinhos, magos e charla­tães de toda espécie.

Apogeu e decadência da astrologia

Arte divinatória injustamente caluniada nos dias de hoje pelos homens de ciência, a astrologia gozou de grande prestígio entre reis e príncipes na antiguidade. Alexandre, o Grande, consul­tava astrólogos e se guiou pelas suas predições ao conquistar o mundo. Júlio César, diz-se, era conhecedor e praticante da ciência dos astros. Cleópatra chegou a “plantar” um astrólogo (Se­leuco) ao lado de Marco Antônio, para melhor manipulá-lo. Otávio Augusto te­ve a sua ascensão e o seu império fulgurante prog­nosticado por um astrólogo ao nascer. Tibério não só consultava astrólogos (teve ao seu lado o gran­de Trasilo), como também pratica­va a astrologia com rara perspicácia. Ne­ro jamais se arrependeu de seguir a risca os conselhos do seu astrólogo Balbílio (filho de Trasilo). Sétimo Seve­ro foi buscar na Ásia uma esposa para fazer cumprirem-se as predições dos as­tros. Marco Aurélio acreditava na astrologia, bem como Adria­no, Ves­pasiano, Alexan­dre Severo e Juliano. Fre­derico II teve em Mi­chael Scot, astrólogo, sua eminência parda. Os reis por­tugueses da época dos descobrimentos marítimos jamais desprezaram as orientações de seus astrólogos judeus. D. Duarte, o único que igno­­rou seus conselhos, pagou caro por isso. Eli­zabeth I, da Inglaterra, tinha John Dee, astrólogo, como seu conselheiro particular. Ca­tarina de Médicis teve uma legião de astrólogos a seu serviço. Kepler serviu a Rodolfo II e ao duque de Walles­tein como astrólogo e Galileu ao duque da Toscana. Richelieu e Luís XIV consultavam Morin de Ville­­franche, o último grande astrólogo da tradição antiga.

Até o século dezesseis raros foram os reis, príncipes ou papas que não tiveram a seu serviço estes audaciosos praticantes da ciência das estrelas. E nem mes­mo o decréscimo de credibi­lidade após o decreto de Colbert, em 1666, banindo a astrologia das universidades impediu que ela continuasse a seduzir os poderosos. Napoleão tam­bém teve o seu astrólogo particular e conta-se que sua carreira começou a declinar quando deixou de ouvi-lo. No século vinte, nazistas e alia­dos lançaram mão de astrólogos e de predições astrológicas como arma de guer­ra. Peron, na Argentina, promoveu seu astrólogo (Lope Rega) ao cargo de mi­nistro do Bem Estar Social. O presidente Reagan, que passou à história por ter dado fim à Guerra Fria, foi orientado pela astróloga Joan Quigley.

Em minhas pesquisas não descobri nenhum governante que tenha se arrependido de ter ouvido os conselhos de seus astrólogos. Já o mesmo não se po­de dizer dos economistas, cuja ciência (embora de origem muito mais recente) tem levado gover­nantes à desgraça e nações à bancarrota. 

Astrólogo: profissão de alto risco no passado

Mas não tenham a ilusão de que o ofício de astrólogo e adivinho era coisa fácil no passado. Muito pelo contrário, sempre foi dos mais arriscados na Anti­guidade, pois os poderosos não costumavam perdoar as profecias acertadas, quando anunciavam desastres, nem quan­do falhavam se previam sucessos. Nabuco­donosor, rei da Babilô­nia, mandou executar todos os adivinhos porque não conseguiam interpretar um de seus sonhos. Na Atlântida, segundo a len­da, seus habitantes executaram os adi­vinhos que previram a destrui­ção do continente. Já o profeta Isaías acabou exe­cutado por Manasses, por ter anunciado a destruição de Jerusalém. Muitos astrólogos pagaram com a vida a audácia de pre­ver o destino dos poderosos, como Ascletárion por ter anunciado o fim do imperador Domiciano. Já Vétius Valens foi parar na masmorra depois de prognosticar destino brilhante a um soberano da Ásia, que era o maior inimigo do rei que o hospedava em sua corte na Pérsia. Na Idade Média, o astrólogo Pie­tro D’Abano só escapou da fogueira da Inquisição porque morreu no cárcere; já Cecco D’Ascoli, seu compatriota e contemporâneo, não teve a mesma sorte e acabou na fogueira. Ao final do século XV, o astrólogo de Carlos VII, Symon de Phares, passou o fim de sua vida defendendo-se nos tribunais do Santo Ofício sem que o rei levantasse uma palha para livrar sua pele. Cosimo Ruggieri, um dos astrólogos prediletos de Catarina de Mé­dicis, foi parar nas galés por envolver-se em intrigas e conspirações. Lu­cas Gau­ric, outro de seus astrólogos famosos, passou por maus momentos depois de prognosticar ao príncipe de Bolonha que ele seria expulso de seu reino: foi preso e torturado por cinco dias. No século de­zes­sete, o frade fran­cis­cano fran­cês Nobi­libus, astrólogo célebre em sua época, foi enforcado e quei­ma­do por crime de magia. No século vinte, o regime nazista valeu-se dos talentos do astrólogo suiço Karl Ernst Kraft, que depois caiu em desgraça, acabou preso, deportado para o campo de Buchen­wald, e morreu de tifo durante a viagem de trem.

Astrólogos árabes

No fascinante mundo dos astrólogos há uma galeria de personagens dos mais diversos tipos, que vai desde o temperamento narcisista, briguen­to e excêntrico de Tycho Brahe à natureza melancólica e depressiva de Kepler, passando pelo caráter ambíguo e “mineiro” de  Lilly, o sinistro cons­pirador Ruggieri, o ines­cru­puloso Dr. Forman, o mago promotor de prodígios Michael Scot, sem es­quecer do caráter lascivo e vicioso de Car­dan. E não podemos deixar de lembrar também os artistas e escritores que a es­tu­daram, co­mo Vir­gí­lio, Dante, Ca­mões, Dürer, Bal­zac, Goe­the, André Bret­on, Fer­­nando Pessoa, Hen­­ry Miller e muitos outros. O que poderia haver de comum entre todos esses homens, além de uma grande sede de conhecimento e a paixão pela astrologia? Aparentemente os astrólogos nascem aleatoriamente debaixo de todos os signos, mas seria interessante tentar descobrir se o planeta Urano — patrono da astro­logia — apareceria com relevância estatística nos seus mapas de nascimento. Talvez um estudo comparativo entre o horóscopo dos grandes astrólogos do passado e dos adeptos célebres da arte astrológica  pudesse nos ajudar a entender melhor a natureza dos “filhos de Urânia”. 

Audácia e obstinação dos astrólogos

Ao longo do tempo, até o século de­zessete, os astrólogos ocuparam quase sempre posição de destaque junto aos homens que detinham o poder, e não se pode ignorar a influência que tiveram no curso de muitos acontecimentos do passado. Os registros históricos sobre a atuação deles são abundantes. Na época dos césares estiveram envolvidos em intrigas e conspirações, ajudando a derrubar ou elevar imperadores, como Balbílio e Seleuco entre outros. 

Classe de homens audaciosos e obs­tinados, conseguiram sobreviver às perseguições encarniçadas de alguns Césa­res e aos diversos éditos de expulsão do Senado romano. Na Idade Média, com o ocaso do império romano do Ocidente, sobreviveram entre os bizantinos e os árabes. Enquanto a Eu­­ro­pa mergulhava na longa noite do escolasticismo, os astrólogos muçulmanos e judeus promoveram a síntese do conhecimento astronômico e astrológico da antiguidade, e o transmitiram depois aos europeus. Nem mesmo as bulas condenatórias da Igreja conseguiram detê-los. No século XII eles eram, sobretudo, mon­ges e alquimistas, como Roger Bacon e Santo Alberto Magno, mergulhados na mística cristã e seduzidos pelo magismo da tradição árabe. Outros, como Bonatti, fizeram da arte da guerra uma especialidade as­trológica para colocar-se a serviço dos príncipes. No Renas­ci­mento, além de médicos e conselheiros, voltaram a participar de conspirações políticas e exerceram também o papel de es­piões, como o caso de John Dee, Rug­gie­­ri e do próprio Nos­tra­damus. 

Tal qual verdadeiros cavaleiros errantes eles se deslocavam pelas cortes da Europa deixando um rastro de lendas sobre predições infalíveis e curas mira­culosas. A publicação da obra de Copér­nico, que era também astrólogo amador, foi saudada como o tiro de misericórdia contra a astrologia pelos seus detratores, mas ela continuou de pé. 

O século dezesseis foi marcado pe­lo hermetismo e pelo rosacrucia­nis­mo, que deixaram sua marca nos astró­logos da época. Uma onda de mis­ticismo varreu a Europa e havia ver­dadeira febre pelos estudos alquí­micos e a busca da Pedra Filo­sofal.  

No século XVII os astrólogos tam­bém não conseguiram deixar de la­do a voca­ção para o en­volvi­mento na política e se engajaram na Guerra Civil Inglesa, dividindo-se entre monarquistas e parlamentaristas. Nesta “gue­r­ra de almana­ques”, muitos deles pegaram em armas para fazer valer suas predições astrológicas. Mas, a partir desta época, começaram a ser ridicularizados e menosprezados pelos homens de ciên­cia.

Século XVII: astrologia como piada

De novo os detratores da astrolo­gia saudaram seu tiro de misericórdia, desta vez na obra de Newton
(também outro entusiasta dela). Alvo das chacotas de La Fontaine e Voltaire, os astrólogos viraram caricatura como personagens de teatro sob a pena do inglês Congréve e do espanhol La Barca. No sécu­lo das luzes já ocupavam um papel secundário, limitados a produção de almana­ques astrológicos populares que tinham grande aceitação apenas entre as classes mais baixas. Swift e Voltaire escarneceram os astrólogos e os tornaram mo­ti­vo de piada; Wal­ter Scott criticou-os implacavelmente; mas isso não impediu que Goe­the estudasse astrologia e lhe rendesse tributo, assim como Bal­zac... Os astrólogos dos séculos dezoito e de­zenove não tinham mais a aura de respeitabilidade que desfrutavam no passado nem eram também homens de ciência com boa acolhida entre reis e príncipes. No início do século vinte, desacreditada pelos astrônomos e cientistas, a astrologia sobreviveu nas colunas de horóscopo dos jornais e revistas, e nos alma­naques astrológicos. Por causa deste apelo popular, a predição astro­lógica voltou a ser utilizada como instrumento de propaganda durante a Segunda Guerra Mun­dial, tanto pelos nazistas como pelos ingleses. Antes disso, na guerra russo-japonesa, o alto comando nipô­nico tinha astrólogos ofi­ciais e nenhum ataque era determinado sem terem antes consultado os astros e sem a certeza de que eram favoráveis.

Final do século XX: renascimento astrológico

O último “tiro de misericórdia” nessa velha senhora foi a chegada do homem à Lua, quando os astrônomos fizeram ironias a respeito do horóscopo dos astronautas. Mas a morta teima em continuar viva, cada vez mais forte, e a enterrar seus inimigos e detra­tores...

Quando se pensava que ela havia sido varrida para a lata de lixo da História como uma superstição do passado, eis que ela ressurge com toda força nas últimas décadas do século vinte. Vivemos hoje uma verdadeira Renascença do conhe­cimento astrológico, com o surgimento de uma nova classe de profissionais das mais diversas áreas de estudo, empenhados na sua renovação e no resgate de antigos tex­tos. 

As­sim como no final da Idade Média, quando a astrologia beneficiou-se da in­venção da imprensa para se tornar mais estudada e conhecida, no presente ela se beneficia também dos novos meios de comunicação, como a Internet. Sem dúvida, o computador tem contribuído enormemente para o fluxo de informações e a democratização do conhecimento, neste verdadeiro boom dos estudos astrológicos em plena alvorada do terceiro milênio. Compilar uma obra como esta há três décadas seria uma tarefa pe­nosa, dada a escassez de obras específicas so­bre história da astrologia, biografias e textos de astrólogos antigos. Hoje, através da Web, verdadeiras raridades bi­blio­grá­ficas do mun­do inteiro, que em passado recente não se encontrariam no Brasil, estão a dis­posição dos pesquisadores.

Neste início do século XXI, a popularidade alcançada pela astrologia só é com­parável a que gozava no império romano na época em que a era de Áries estava no seu ocaso. E, curiosamente, ela atingiu o auge no tempo do imperador Augusto, quando os romanos viviam sob a expectativa do cumprimento de profecias que anun­cia­vam a queda iminente do império e o fim do mundo. Atento a esse momento de passagem de ciclo, o poeta Virgílio antecipou a vindoura Nova Era celebrando o nascimento da “criança” que encerraria a Idade de Ferro e tra­ria de volta a Idade de Ouro no mundo inteiro. Cristo nasceria alguns anos depois, mas o Cristia­nismo só tomaria corpo como instituição e imporia seus para­digmas ao Ocidente três séculos mais tarde, quando então começou de fato a era de Peixes. Há certa similaridade en­tre estes dois momentos históricos: am­bos refletem a de­cadência de um mun­do e a expectativa de um novo ciclo por vir. Naquela época, como agora, o momento é de confusão; um caldo de sin­cretismo místico e religioso corrói a religião tradicional, provocando a sua gradativa destruição para que algo novo tome o seu lugar. A civilização toda passa por esse processo al­químico coletivo de morte-regeneração, a noite negra da alma antes que aconteça o renas­cimento.

Não estão, pois, completamente erra­dos os entusiastas adeptos da New Age: como os baianos, começaram a pular carnaval antes da época; como galos insones, cantam na madrugada escura iludidos pelo clarão de uma lâmpada acesa...




Astroanedotário

Histórias da Astrologia 

Bira Câmara

Um painel da história da astrologia sob o prisma anedótico. Histórias, fatos pitorescos e curiosos sobre astrólogos, adivinhos, reis, papas e personalidades históricas.

Brochura, 240 páginas, formato 14 x 21 cm.ilustrada.

Pedidos: jornalivros@gmail.com 



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