No passado, o ofício de astrólogo exigia não só conhecimentos de astronomia, mas também grande dose de coragem e audácia.
Texto de Bira Câmara
Rotulada por Franz Cumont como a “mais persistente alucinação do homem”, “puta da Babilônia” nas palavras de Anthony West e Gerhard Toonder, “filha tola e infame da astronomia” por Kepler, “dama desonrada” segundo o escritor Walter Scott, são muitos os adjetivos recebidos pela astrologia por parte de seus adversários e detratores.
No entanto, a verdade é que ela tem atravessado os séculos sem perder o crédito, pelo menos entre o povão, e não é sem motivo que Rudolf Thiel afirmou ser a astrologia o movimento espiritual mais bem sucedido de todos os tempos. Por mais que os astrônomos a reneguem, os céticos a escarneçam e os religiosos esperneiem à sua menção, ela continua de pé desafiando o tempo e sobrevivendo até mesmo aos astrólogos ignorantes, aos fabricantes de horóscopos de jornais, aos seus detratores e, sobretudo, aos misticóides que – sem nenhum conhecimento astrológico – apelam para ela para justificar suas profecias estapafúrdias.
Urânia, musa da astrologia, da astronomia e da geometria, rainha dos céus, representada com um globo numa das mãos |
Estudada e praticada no passado por sábios, religiosos, senhores da guerra e até césares, a astrologia produziu um riquíssimo anedotário que até agora ainda não foi devidamente compilado. Obras sobre história da astrologia há muitas, mas nenhuma que eu saiba centrada apenas no seu lado anedótico. O Astroanedotário não se propõe a ir mais longe do que isso e não tenta, portanto, fazer um inventário da história da astrologia no sentido acadêmico ou dentro de um rigor histórico. Deixo isso aos eruditos; meu interesse é pela lenda, pela ficção, pela curiosidade, pelo insólito. A história da vida dos grandes astrólogos do passado se mistura ao fantástico e ao maravilhoso, como podemos ver nas lendas de Michael Scot e de Albumasar. Elas estão espalhadas pelos livros de história, em autores como Suetônio, Tácito, Dion Cassius, Plínio, Diodoro da Sicília, Plutarco, Heródoto, e tantos outros; gente que viveu numa época em que os historiadores ainda não haviam pensado em cometer uma lobotomia na História e apagar de sua memória qualquer referência à astrologia. Mas quem os lê hoje em dia?
Clichê profético
Não nos cabe julgar a veracidade das lendas e episódios envolvendo astrólogos e adeptos desta velha arte. Quando muito, aqui ou acolá, podemos arriscar alguma conjectura, imaginar que os fatos foram distorcidos e revestidos com o manto da fantasia. Mas vale o registro. Notamos em muitas predições um clichê característico, que se repete ao longo do tempo com mudanças de tempo e de lugar. Assim, astrólogos caldeus previnem Alexandre que ele encontraria a morte se entrasse na Babilônia; o adivinho adverte Júlio César para tomar cuidado com “os idos de Março”; outro alerta Juliano a temer os “campos frigios”; a Frederico II, Michael Scot profetiza que encontraria a morte “debaixo de uma flor e uma grade de ferro”; Catarina de Médicis é alertada para evitar Saint Germain; e assim por diante...
Poderíamos suspeitar de predições feitas a posteriori, arranjadas pelos cronistas para que se cumprisse o clichê profético. Ou, também, por que não apelar para a neurolinguística e supor que uma profecia feita por alguém que tenha o status de adivinho possa ficar enraizada no subconsciente da pessoa, fazendo com que ela corra de encontro ao seu destino? Esse tipo de predição, na verdade, tem pouco ou nada a ver com previsão astrológica e parece mais produto de algum tipo de clarividência ou premonição, obtida por outras técnicas. É sabido que muitos astrólogos do passado usavam também outras formas de adivinhação como o aruspicínio, a quiromancia, a necromancia. O nome “caldeu”, dado aos praticantes da astrologia, estendia-se a um amplo leque de gente que abrangia adivinhos, magos e charlatães de toda espécie.
Apogeu e decadência da astrologia
Arte divinatória injustamente caluniada nos dias de hoje pelos homens de ciência, a astrologia gozou de grande prestígio entre reis e príncipes na antiguidade. Alexandre, o Grande, consultava astrólogos e se guiou pelas suas predições ao conquistar o mundo. Júlio César, diz-se, era conhecedor e praticante da ciência dos astros. Cleópatra chegou a “plantar” um astrólogo (Seleuco) ao lado de Marco Antônio, para melhor manipulá-lo. Otávio Augusto teve a sua ascensão e o seu império fulgurante prognosticado por um astrólogo ao nascer. Tibério não só consultava astrólogos (teve ao seu lado o grande Trasilo), como também praticava a astrologia com rara perspicácia. Nero jamais se arrependeu de seguir a risca os conselhos do seu astrólogo Balbílio (filho de Trasilo). Sétimo Severo foi buscar na Ásia uma esposa para fazer cumprirem-se as predições dos astros. Marco Aurélio acreditava na astrologia, bem como Adriano, Vespasiano, Alexandre Severo e Juliano. Frederico II teve em Michael Scot, astrólogo, sua eminência parda. Os reis portugueses da época dos descobrimentos marítimos jamais desprezaram as orientações de seus astrólogos judeus. D. Duarte, o único que ignorou seus conselhos, pagou caro por isso. Elizabeth I, da Inglaterra, tinha John Dee, astrólogo, como seu conselheiro particular. Catarina de Médicis teve uma legião de astrólogos a seu serviço. Kepler serviu a Rodolfo II e ao duque de Wallestein como astrólogo e Galileu ao duque da Toscana. Richelieu e Luís XIV consultavam Morin de Villefranche, o último grande astrólogo da tradição antiga.Até o século dezesseis raros foram os reis, príncipes ou papas que não tiveram a seu serviço estes audaciosos praticantes da ciência das estrelas. E nem mesmo o decréscimo de credibilidade após o decreto de Colbert, em 1666, banindo a astrologia das universidades impediu que ela continuasse a seduzir os poderosos. Napoleão também teve o seu astrólogo particular e conta-se que sua carreira começou a declinar quando deixou de ouvi-lo. No século vinte, nazistas e aliados lançaram mão de astrólogos e de predições astrológicas como arma de guerra. Peron, na Argentina, promoveu seu astrólogo (Lope Rega) ao cargo de ministro do Bem Estar Social. O presidente Reagan, que passou à história por ter dado fim à Guerra Fria, foi orientado pela astróloga Joan Quigley.
Em minhas pesquisas não descobri nenhum governante que tenha se arrependido de ter ouvido os conselhos de seus astrólogos. Já o mesmo não se pode dizer dos economistas, cuja ciência (embora de origem muito mais recente) tem levado governantes à desgraça e nações à bancarrota.
Astrólogo: profissão de alto risco no passado
Mas não tenham a ilusão de que o ofício de astrólogo e adivinho era coisa fácil no passado. Muito pelo contrário, sempre foi dos mais arriscados na Antiguidade, pois os poderosos não costumavam perdoar as profecias acertadas, quando anunciavam desastres, nem quando falhavam se previam sucessos. Nabucodonosor, rei da Babilônia, mandou executar todos os adivinhos porque não conseguiam interpretar um de seus sonhos. Na Atlântida, segundo a lenda, seus habitantes executaram os adivinhos que previram a destruição do continente. Já o profeta Isaías acabou executado por Manasses, por ter anunciado a destruição de Jerusalém. Muitos astrólogos pagaram com a vida a audácia de prever o destino dos poderosos, como Ascletárion por ter anunciado o fim do imperador Domiciano. Já Vétius Valens foi parar na masmorra depois de prognosticar destino brilhante a um soberano da Ásia, que era o maior inimigo do rei que o hospedava em sua corte na Pérsia. Na Idade Média, o astrólogo Pietro D’Abano só escapou da fogueira da Inquisição porque morreu no cárcere; já Cecco D’Ascoli, seu compatriota e contemporâneo, não teve a mesma sorte e acabou na fogueira. Ao final do século XV, o astrólogo de Carlos VII, Symon de Phares, passou o fim de sua vida defendendo-se nos tribunais do Santo Ofício sem que o rei levantasse uma palha para livrar sua pele. Cosimo Ruggieri, um dos astrólogos prediletos de Catarina de Médicis, foi parar nas galés por envolver-se em intrigas e conspirações. Lucas Gauric, outro de seus astrólogos famosos, passou por maus momentos depois de prognosticar ao príncipe de Bolonha que ele seria expulso de seu reino: foi preso e torturado por cinco dias. No século dezessete, o frade franciscano francês Nobilibus, astrólogo célebre em sua época, foi enforcado e queimado por crime de magia. No século vinte, o regime nazista valeu-se dos talentos do astrólogo suiço Karl Ernst Kraft, que depois caiu em desgraça, acabou preso, deportado para o campo de Buchenwald, e morreu de tifo durante a viagem de trem.
Astrólogos árabes |
No fascinante mundo dos astrólogos há uma galeria de personagens dos mais diversos tipos, que vai desde o temperamento narcisista, briguento e excêntrico de Tycho Brahe à natureza melancólica e depressiva de Kepler, passando pelo caráter ambíguo e “mineiro” de Lilly, o sinistro conspirador Ruggieri, o inescrupuloso Dr. Forman, o mago promotor de prodígios Michael Scot, sem esquecer do caráter lascivo e vicioso de Cardan. E não podemos deixar de lembrar também os artistas e escritores que a estudaram, como Virgílio, Dante, Camões, Dürer, Balzac, Goethe, André Breton, Fernando Pessoa, Henry Miller e muitos outros. O que poderia haver de comum entre todos esses homens, além de uma grande sede de conhecimento e a paixão pela astrologia? Aparentemente os astrólogos nascem aleatoriamente debaixo de todos os signos, mas seria interessante tentar descobrir se o planeta Urano — patrono da astrologia — apareceria com relevância estatística nos seus mapas de nascimento. Talvez um estudo comparativo entre o horóscopo dos grandes astrólogos do passado e dos adeptos célebres da arte astrológica pudesse nos ajudar a entender melhor a natureza dos “filhos de Urânia”.
Audácia e obstinação dos astrólogos
Ao longo do tempo, até o século dezessete, os astrólogos ocuparam quase sempre posição de destaque junto aos homens que detinham o poder, e não se pode ignorar a influência que tiveram no curso de muitos acontecimentos do passado. Os registros históricos sobre a atuação deles são abundantes. Na época dos césares estiveram envolvidos em intrigas e conspirações, ajudando a derrubar ou elevar imperadores, como Balbílio e Seleuco entre outros.
Classe de homens audaciosos e obstinados, conseguiram sobreviver às perseguições encarniçadas de alguns Césares e aos diversos éditos de expulsão do Senado romano. Na Idade Média, com o ocaso do império romano do Ocidente, sobreviveram entre os bizantinos e os árabes. Enquanto a Europa mergulhava na longa noite do escolasticismo, os astrólogos muçulmanos e judeus promoveram a síntese do conhecimento astronômico e astrológico da antiguidade, e o transmitiram depois aos europeus. Nem mesmo as bulas condenatórias da Igreja conseguiram detê-los. No século XII eles eram, sobretudo, monges e alquimistas, como Roger Bacon e Santo Alberto Magno, mergulhados na mística cristã e seduzidos pelo magismo da tradição árabe. Outros, como Bonatti, fizeram da arte da guerra uma especialidade astrológica para colocar-se a serviço dos príncipes. No Renascimento, além de médicos e conselheiros, voltaram a participar de conspirações políticas e exerceram também o papel de espiões, como o caso de John Dee, Ruggieri e do próprio Nostradamus.Tal qual verdadeiros cavaleiros errantes eles se deslocavam pelas cortes da Europa deixando um rastro de lendas sobre predições infalíveis e curas miraculosas. A publicação da obra de Copérnico, que era também astrólogo amador, foi saudada como o tiro de misericórdia contra a astrologia pelos seus detratores, mas ela continuou de pé.
O século dezesseis foi marcado pelo hermetismo e pelo rosacrucianismo, que deixaram sua marca nos astrólogos da época. Uma onda de misticismo varreu a Europa e havia verdadeira febre pelos estudos alquímicos e a busca da Pedra Filosofal.
No século XVII os astrólogos também não conseguiram deixar de lado a vocação para o envolvimento na política e se engajaram na Guerra Civil Inglesa, dividindo-se entre monarquistas e parlamentaristas. Nesta “guerra de almanaques”, muitos deles pegaram em armas para fazer valer suas predições astrológicas. Mas, a partir desta época, começaram a ser ridicularizados e menosprezados pelos homens de ciência.
Século XVII: astrologia como piada
De novo os detratores da astrologia saudaram seu tiro de misericórdia, desta vez na obra de Newton(também outro entusiasta dela). Alvo das chacotas de La Fontaine e Voltaire, os astrólogos viraram caricatura como personagens de teatro sob a pena do inglês Congréve e do espanhol La Barca. No século das luzes já ocupavam um papel secundário, limitados a produção de almanaques astrológicos populares que tinham grande aceitação apenas entre as classes mais baixas. Swift e Voltaire escarneceram os astrólogos e os tornaram motivo de piada; Walter Scott criticou-os implacavelmente; mas isso não impediu que Goethe estudasse astrologia e lhe rendesse tributo, assim como Balzac... Os astrólogos dos séculos dezoito e dezenove não tinham mais a aura de respeitabilidade que desfrutavam no passado nem eram também homens de ciência com boa acolhida entre reis e príncipes. No início do século vinte, desacreditada pelos astrônomos e cientistas, a astrologia sobreviveu nas colunas de horóscopo dos jornais e revistas, e nos almanaques astrológicos. Por causa deste apelo popular, a predição astrológica voltou a ser utilizada como instrumento de propaganda durante a Segunda Guerra Mundial, tanto pelos nazistas como pelos ingleses. Antes disso, na guerra russo-japonesa, o alto comando nipônico tinha astrólogos oficiais e nenhum ataque era determinado sem terem antes consultado os astros e sem a certeza de que eram favoráveis.
Final do século XX: renascimento astrológico
O último “tiro de misericórdia” nessa velha senhora foi a chegada do homem à Lua, quando os astrônomos fizeram ironias a respeito do horóscopo dos astronautas. Mas a morta teima em continuar viva, cada vez mais forte, e a enterrar seus inimigos e detratores...
Quando se pensava que ela havia sido varrida para a lata de lixo da História como uma superstição do passado, eis que ela ressurge com toda força nas últimas décadas do século vinte. Vivemos hoje uma verdadeira Renascença do conhecimento astrológico, com o surgimento de uma nova classe de profissionais das mais diversas áreas de estudo, empenhados na sua renovação e no resgate de antigos textos.
Assim como no final da Idade Média, quando a astrologia beneficiou-se da invenção da imprensa para se tornar mais estudada e conhecida, no presente ela se beneficia também dos novos meios de comunicação, como a Internet. Sem dúvida, o computador tem contribuído enormemente para o fluxo de informações e a democratização do conhecimento, neste verdadeiro boom dos estudos astrológicos em plena alvorada do terceiro milênio. Compilar uma obra como esta há três décadas seria uma tarefa penosa, dada a escassez de obras específicas sobre história da astrologia, biografias e textos de astrólogos antigos. Hoje, através da Web, verdadeiras raridades bibliográficas do mundo inteiro, que em passado recente não se encontrariam no Brasil, estão a disposição dos pesquisadores.
Neste início do século XXI, a popularidade alcançada pela astrologia só é comparável a que gozava no império romano na época em que a era de Áries estava no seu ocaso. E, curiosamente, ela atingiu o auge no tempo do imperador Augusto, quando os romanos viviam sob a expectativa do cumprimento de profecias que anunciavam a queda iminente do império e o fim do mundo. Atento a esse momento de passagem de ciclo, o poeta Virgílio antecipou a vindoura Nova Era celebrando o nascimento da “criança” que encerraria a Idade de Ferro e traria de volta a Idade de Ouro no mundo inteiro. Cristo nasceria alguns anos depois, mas o Cristianismo só tomaria corpo como instituição e imporia seus paradigmas ao Ocidente três séculos mais tarde, quando então começou de fato a era de Peixes. Há certa similaridade entre estes dois momentos históricos: ambos refletem a decadência de um mundo e a expectativa de um novo ciclo por vir. Naquela época, como agora, o momento é de confusão; um caldo de sincretismo místico e religioso corrói a religião tradicional, provocando a sua gradativa destruição para que algo novo tome o seu lugar. A civilização toda passa por esse processo alquímico coletivo de morte-regeneração, a noite negra da alma antes que aconteça o renascimento.
Não estão, pois, completamente errados os entusiastas adeptos da New Age: como os baianos, começaram a pular carnaval antes da época; como galos insones, cantam na madrugada escura iludidos pelo clarão de uma lâmpada acesa...
Astroanedotário
Bira Câmara
Um painel da história da astrologia sob o prisma anedótico. Histórias, fatos pitorescos e curiosos sobre astrólogos, adivinhos, reis, papas e personalidades históricas.
Brochura, 240 páginas, formato 14 x 21 cm.ilustrada.
Pedidos: jornalivros@gmail.com
Nenhum comentário:
Postar um comentário