sexta-feira, 9 de abril de 2021

O Mártir do Gólgota, desafiando o tempo

A partir de sua experiência como autor folhetinesco, Pérez Es­crich resgatou a figura de Cristo da glória imortal à ficção no mais célebre de seus romances, O Mártir do Gólgota, publicado pela primeira vez em cinco volumes entre 1863 e 64.

(Texto de Bira Câmara) 

Na época em que Pérez Es­crich escreveu O Mártir do Gólgota, o romance na Es­panha seguia a voga euro­peia da literatura de costumes e do romance histórico, cujos maiores re­presentantes eram o escocês Wal­ter Scott, e os franceses Víctor Hugo, Federico Soulié, Eugenio Sué, Paul Féval, Alexandre Dumas pai e Jorge Sand.

Desde 1840, na França, o gênero folhetinesco era cultivado com êxi­to surpreendente. Os fun­dadores do periódico francês Siècle foram os primeiros a fazer a publicação de obras extensas, de preferência novelas, que en­tregavam aos leitores em partes rela­tiva­mente breves, in­­ter­­rompidas no momento mais dramático com o aviso «continua no próximo número». Em pouco tempo a maioria dos jornais terminou imitando o exemplo, de tal modo que os editores disputavam os escritores mais populares a força de dinheiro. Todos os jornais da Europa se apressaram a copiar a ideia e, assim, o folhetim atraia para eles leitores e fortuna.

Nos anos sessenta, a Espanha tam­bém acabou se rendendo à moda da novela de folhetim, importada da França. Manuel Fernández y González foi o grande autor espanhol de folhetins nesta época, e Pérez Escrich adotou-o como mestre, chegando a rivalizar com ele na preferência do público leitor.

A partir de sua experiência como autor folhetinesco, Pérez Es­crich resgatou a figura de Cristo da glória imortal à ficção no mais célebre de seus romances, O Mártir do Gólgota, publicado pela primeira vez em cinco volumes entre 1863 e 64.

Nessa obra — a vida de Jesus romancea­da —, realidade e fantasia, história e imaginação estão misturadas. Ao fazer de um evento de caráter histórico o centro de sua narrativa, o autor se aventura por um gênero híbrido, o que implica na difícil combinação e dosagem do real e do fictício, com o risco de cair em qualquer dos extremos, ou a preocupação objetiva em diminuir a criação pessoal, ou a pura imaginação em detrimento da história. A popularidade alcançada por este romance, que resiste ao tempo e continua a cativar leitores, é uma prova de que Pérez Escrich conseguiu superar todas estas dificuldades.

Em O Mártir do Gólgota podemos ver o esforço do autor para entrar, com uma perspectiva histórica, no mundo em que viveu Cristo, e ainda se preocupa em inserir algumas notas explicativas do texto, sem que isso prejudique a fluência da leitura. Pérez Escrich tira da História e dos Livros Sagrados, os elementos mais necessários para servir de trampolim para a criação romanesca, com rara maestria.

Ao combinar o histórico e a ficção, Escrich consegue em O Mártir do Gólgota respeitar a veracidade substancial da figura de Cristo sem sacrificar sua imaginação de romancista. No entanto, a fantasia, sem dúvida, predomina em sua obra.

O cenário político da Judeia na época do nascimento de Cristo, o mundo decadente da Roma impe­rial, a sequência histórica da vida de Cristo à luz do Evangelho, a perseguição dos cristãos pelo paganismo romano são mostrados nesta obra com fidelidade à essência da sua doutrina.

O ficcionista não pode empreender uma reconstrução do passado sem o trabalho prévio, meticuloso e erudito de investigação, junto à sagacidade evo­cativa capaz de abordar, além do fato externo, o espírito, a vitalidade, a própria presença de uma era ou um personagem passado. Todas estas qualidades estão presentes neste romance.

De fato, ele usa seus próprios recursos, dotados de uma espécie de intuição para evocar épocas e eventos, assim como também a essência do que leu nos romancistas ou dramaturgos de seu tempo, que frequentemente revisitaram os temas do Oriente e da Palestina. É por isso que as configurações e os personagens de O Mártir del Gólgota têm um perfil literário subjetivo. O romance histórico pode atingir uma verdade humana mais profunda que as obras didáticas e os calendários históricos, e, embora esta obra exagere o colorido do tempo e do cenário, cativa o interesse do leitor e até emociona às vezes. Pérez Escrich mantém a história em um clima emocional quase permanente e vivo, para que o leitor possa seguir atentamente a leitura de um texto volumoso respeitável, graças à sua imaginação romântica e seu senso dramático e sentimental.

Se o romance histórico já representa um problema, o romance histórico-religioso levanta muitos mais. Mesmo assim, Pérez Escrich é bem sucedido em sua empreitada. Escolheu um tema religioso: a vida e a doutrina do Salvador, e que não é fácil de transformar em literatura folhetinesca de modo criativo ou, geralmente, não convence facilmente a minorias ou maiorias.

Ao contrário do juízo do público leitor que consagrou esta obra através do tempo, os críticos em geral fazem restrições a ela, que está longe de ser uma obra-prima. Mas O Mártir do Gólgota tem a seu favor o teste do tempo e da popularidade, traduzido no grande número de edições e de leitores que o ele­geram como um dos mais belos romances do gênero folhetinesco.

O Mártir do Gólgota 

Pérez Escrich

Brochura, 480 páginas, formato 14 X 21 cm. Com ilustrações de Gustave Doré.

PEDIDOS:

jornalivros@gmail.com



Pérez, um cavalheiro exem­plar

Pérez Escrich nasceu em Valência em 1829. Desde tenra idade manifestou vocação literária que aperfeiçoou relacionando-se com os escritores e artistas mais importantes de sua cidade natal.

Com dezenove anos de idade, a morte quase repentina dos pais de uma jovem que namorava, levou-o a se casar às pressas e assumir a educação de quatro irmãos dela, o que implicou na renúncia aos estudos e à urgência de trabalho. Foi uma das maiores provas que o futuro romancista enfrentou, mostrando a bondade de seu coração e a retidão de intenção que sempre guiaram os atos de sua vida. 

A partir daquele momento, sua situação ficou tão difícil que ele decidiu se mudar para Madri, sem nenhum recurso além de seu desejo de seguir a profissão de escritor. Começou a escrever comédias com tanta facilidade e fecundidade que logo atraiu a atenção dos intelec­tuais, embora não tenha conquistado o favor do público.

Seu talento natural o levou a cultivar todos os gêneros, bem como o drama, a comédia e o musical, e a buscar em suas obras temas, personagens e situações que quase sempre despertavam a simpatia popular. No entanto, Pérez Escrich não conseguiu sucesso imediato.

Longe de desanimar, continuou com diligência teimosa e otimista a escrever e estrear peças nas quais lançava mão da história e da fábula, do natural e do fantástico.

Decidiu se juntar à moda do romance em folhetinesco, que então atingia seu auge na pena boêmia de Manuel Fernández González.

O padre de aldeia, de 1858, tinha sido o seu maior triunfo cênico, e por isso escolheu este trabalho para convertê-lo em novo folhetim. Alcançou tanto  sucesso nesta sua primeira incursão no campo do romance, publicado pelo famoso editor Manini, que os leitores esgotaram a edição rapidamente. O autor afirmou que, para escrevê-lo, não teve outra fonte de inspiração além do Evangelho. Suas páginas estavam longe de um modelo perfeito de arte, mas despertavam interesse e empolgavam, isto é, tinham tudo o que o leitor procurava nos folhetins. Por fim, Pérez Escrich encontrara o caminho, que um incidente ruidoso acabou por abrir.

Luis Mariano de Larra (1830-1901), prolífico escritor de comé­dias e costumes históricos, publicou La oración de la tarde, de sabor muito cristão, sobre o perdão das calúnias, que foi uma das suas principais obras e naquela época despertou grande interesse na opinião pública. Como se disse que tinha semelhança com O padre da aldeia, o assunto chegou aos tribunais e foi convocado um júri literário, que decidiu que eram dois trabalhos independentes, sem parentesco ou contaminação.

O sucesso de O padre de aldeia levou Pérez Escrich a cultivar exclusivamente este gênero de romance e a escrever incansavelmente os folhetins que os editores encomendavam a ele.

Não demorou para que ficasse rico e imensamente popular graças ao trabalho incansável de sua pena. Chegou a ganhar cerca de 50.000 pesetas anuais, uma soma enorme pa­ra a época, e passou a viver como um príncipe e a ajudar seus amigos.

Mudou-se para Pinto, nos arredores de Madri, onde ocupou um hotel confortável com o único propósito de acolher com esplendor aqueles que o visitavam. Ajudou muitos romancistas iniciantes com generoso desinteresse e viveu para sua casa, para seus amigos e para o seu passatempo de caçador incansável.

É por isso que é comum encontrar em seus romances o elogio da família e da amizade, bem como numerosas descrições de caça.

Escreveu até os últimos dias, num esforço para produzir muito e ganhar mais; assim, seu grande talento como romancista foi desperdiçado. 

No final da vida, velho e esquecido, teve que aceitar um emprego na National Press e, mais tarde, conseguiu o cargo de diretor do Asilo de las Mercedes em Madri. Homem muito gentil, cavalheiro exem­plar de excepcio­nal simpatia, morreu aos 68 anos em 1897.

Embora tenha assinado quase todas as suas obras com o seu nome, às vezes usou o pseudônimo Carlos Peña-Rubia, como era costume, não para esconder o nome, mas para melhor preservá-lo.

Escreveu muitos romances e dra­mas dos quais se destacam os romances: El cura de aldea, La cari­dad cristiana, El matrimonio del diablo, Historia de un beso, Fortuna, Sor Clemencia, La envidia, La Calumnia, La mujer adúltera, Es­cenas de la vida, El infierno de los celos, Las obras de misericordia, La esposa mártir, El genio del bien, El amor de los amores, El manuscrito de una madre, La madre de los desamparados, Las redes del amor, Los que ríen y los que lloran, El corazón en la mano (também comedia), El ángel de la tierra, El frac azul (autobiográfica), e a mais conhecida de todas, El Mártir del Gólgota. 

Principais dramas: El cura de aldea; Juan el tullido, Sueños de amor y de ambición, Alumbra a tu víctima, Los extremos, El ángel malo, El maestro de baile, Herencia de lágrimas, La hija de Fernán Gil, La corte del rey poeta, El vértigo de Rosa, Amor y resigna­ción, Las garras del diablo Gil Blas, La mosquita muerta, El corazón en la mano, El maestro de hacer comedias, El músico de la murga, El maestro de escuela.

Se as obras dramáticas de Pérez Escrich estão esquecidas para sempre, por outro lado, alguns de seus romances continuam sendo reedita­dos como é o caso de El cura de aldea, La Calumnia, La mujer adúltera, Las obras de misericordia e, é claro, El Mártir del Gólgota, que tem desfrutado de um favor especial entre o público.

O tom de seus romances e dramas, como reflexo da vida digna do autor e de suas convicções religiosas, é eminentemente moral. Os mais nobres sentimentos, as virtudes humanas e cristãs, todos eles promovendo a caridade para com o próximo, inspiram os argumentos e personagens de Pérez Escrich.

Eusebio Blanco disse-lhe em um poe­ma: «Você nunca manchou sua caneta.» Um merecido elogio para a qua­li­dade moral do autor e seu trabalho.

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