Vida agônica, morte, sonho, devaneio, delírio, loucura, amor, sexo, salvação e perdição, tempo e eternidade, realidade e fantasia, Deus e homem se exprimem sob diferentes roupagens e máscaras na narrativa descontínua, radical, aguçada e antinômica de Hilda Hilst.
por Cláudio Tsuyoshi Suenaga*
Hilda Hilst nasceu na cidade de Jaú, interior de São Paulo, em 21 de abril de 1930, filha única do fazendeiro, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst. Depois da separação dos pais, sua mãe levou-a consigo e ao meio irmão, filho de um casamento anterior, para Santos, litoral sul paulista.
Quando tinha 5 anos de idade, seu pai manifestaria um quadro irreversível de esquizofrenia paranóide. Internado numa clínica em Campinas, viveria até sua morte (em 66) alternando longos períodos em sanatórios para doentes mentais. Hilda estudou num colégio de freiras e a experiência refletiu-se na sua dramaturgia (A possessa, Rato no muro), na narrativa (O unicórnio) e também na sua poesia.
Em 1945 mudou-se para um apartamento na Alameda Santos com Marta, a governanta, e iniciou os estudos clássicos na Escola Mackenzie. Em 46 visitou pela primeira vez o pai na Fazenda Olhos d’Água, em Jaú, levando consigo seus poemas para que ele os lesse. Nos três dias que passou no sanatório, num clima ambíguo e nebuloso, beirando o incesto, perturbou-se com sua loucura. Em Carta ao pai, escreveu mais tarde, relembrando o encontro: “Só três noites de amor, só três noites de amor” implorava o pai, confundindo-a com a mãe. Aquele homem desesperado e tomado pela demência, pálida sombra do galã intelectual que escrevia poesia e crítica literária para um jornal de Jaú, não conseguiu ler os poemas da filha. Viu nela somente a imagem do amor que não se conformava em ter perdido...Em 48, HH ingressa na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. A cidade fervilhava de agitações artísticas e ela mergulha de cabeça nesse caudal. Com sua inteligência, diáfana beleza, elegância e temperamento apimentado, fogoso e atrevido, avançado demais para os padrões da provinciana sociedade paulistana de antanho, desperta inúmeras paixões e contrariedades. Em 50 lança seu primeiro livro, Presságio, seguido de Balada de Alzira no ano seguinte. Formada em 52, a jovem bacharel exerce durante alguns meses a advocacia, profissão que, conforme confessou, a deixou “apavorada”.
Decididamente sua personalidade e interesses não se compatibilizavam com uma carreira dedicada às leis e à magistratura. Optou por viajar, primeiro para a Argentina e Chile. Em 55 publica Balada do festival. Em 57 parte para a Europa e permanece seis meses em Paris freqüentando cassinos, festas, boates, shows e conhecendo artistas. Marlon Brando filmava na capital francesa Os deuses vencidos, de Edward Dmytryk. HH, tiara de brilhantes pendurada na testa, envergando um vestido de Christian Dior, muitos martinis na cabeça, subornou o porteiro do Hotel Ritz e bateu à porta do apartamento do astro. Disse-lhe, à queima-roupa: “Monsieur Brando, sou uma jornalista brasileira e quero-o. Vim de longe para isso”. Brando, aos 33 anos, oxigenado, baixo, de “foulard” e “chambre” de seda cor de vinho, longe do magnetismo selvagem e rebelde, não quis aquela encrenca. Mas muitos outros como Dean Martin, Jeff Chandler, Tony Curtis e o milionário Howard Hughes, quiseram. Carlos Drummond de Andrade – que lhe escrevia cartas apaixonadas, lhe dedicava poemas sensuais e a seguia pelas ruas do Rio de Janeiro – e Vinicius de Moraes também, mas estes, apesar de monstros sagrados da literatura, HH dispensou.
Em 59 publica Roteiro do silêncio e Trovas de muito amor para um amado senhor. José Antônio de Almeida Prado, primo da escritora, inspira-se nos poemas desse último livro e compõe a Canção para soprano e piano. Em outras oportunidades volta a basear-se em textos de HH para compor alguns de seus trabalhos mais significativos. Adoniran Barbosa (Quando te achei) e Gilberto Mendes (Trovas), entre outros, também se inspiraram em textos da autora. Ode fragmentária é lançado em 61. Trovas de muito amor para um amado senhor é reeditado por Massao Ohno. Em 62, ganha o Prêmio Pen Club de São Paulo pelo livro Sete cantos do poeta para o anjo.A leitura de Carta a El Greco, de Nikos Kazantzákis, autor de Zorba, o Grego, a impressiona tão fortemente que resolve abandonar a vida boêmia e o intenso convívio social para se dedicar inteiramente à literatura. Em 66, HH conhece o escultor Dante Casarini e no dia 24 de junho se refugia com ele na chácara São José, no Parque Xangrilá, a 11 km de Campinas, iniciando nessa propriedade que pertencia à sua mãe, a construção da futura Casa do Sol, “monastério” e fronteira de vários mundos, onde viveria até o fim da vida, sempre rodeada de livros, cães e gatos vira-latas e assediada por jornalistas, diretores teatrais, professores, místicos, parapsicólogos, atores, escritores etc.
DISCOS VOADORES E TRANSCOMUNICAÇÃO
Em 1967 vivenciou um “fato extraordinário” que daria impulso criativo à sua vida: certa noite, induzida por uma voz misteriosa, saiu ao jardim da chácara e viu uma enorme bola de fogo, que se aproximou dela e deixou-a paralizada. Quando contou aos amigos que vira de perto um disco voador foi chamada de louca, mas a partir daí escreveu como nunca. Foram várias peças de teatro em dois anos: O verdugo ganhou o prêmio Anchieta de 69 e, logo depois, sem ter tempo nem de respirar, a ficção em 70. Um especialista em OVNIs disse-lhe que ela estava a toda porque foi “energizada” por aquele disco!
Nesta época, HH redige A possessa e O rato no muro, iniciando a série de oito peças teatrais, complementada por O visitante, Auto da barca de Camiri, O novo sistema e As aves da noite, e finalizada em 69 com O verdugo e A morte do patriarca. Em 70 publica o seu primeiro livro de prosa, Fluxo-floema, reconhecido como totalmente inovador.
HH contava que avistou discos voadores em mais duas ocasiões. Certo dia, como andava obcecada demais com o assunto, seu marido Dante resolveu levá-la ao cinema, para distraí-la. Quando ia entrar no carro, viu uma “estrela azul, azul” e falou ao marido que era besteira ir ao cinema, já que “eles podem voltar”. Mal acabou de falar e a estrela, na verdade uma “enorme bola azul”, desceu e ficou pairando perto do muro da casa. A última vez teria sido em seu quarto.
Desde sempre preocupada “com essa coisa terrível – a morte, um mergulho no nada”, e imbuída da “certeza definitiva da imortalidade da alma”, HH iria realizar, ao longo da década que se iniciava, uma série de experiências no campo da TCI (TransComunication Instrumental) ou EVP (Electronic Voice Phenomenon) baseando-se nas pesquisas do arqueólogo, filósofo e multimídia sueco Friedrich Jürgenson (1903-1987), autor dos livros Telefone para o além e Rádio-link com os mortos. HH passou a esparramar gravadores de rolo pela sua chácara, deixando-os ligados. Trocou-os depois por gravadores cassetes acoplados a rádios sintonizados entre duas estações. Foi assim que captou e gravou vozes enigmáticas pronunciando palavras e fragmentos de frases, algumas, segundo ela, com até doze vocábulos.A grande atração do V Colóquio Brasileiro de Parapsicologia, realizado em 1977, no auditório do Sesc em São Paulo, era a sessão das chamadas vozes parafísicas ou psicofônicas, com trabalhos apresentados por HH e George Magyary.
Portando o estigma congênito da loucura, que destruiu a vida do pai, e anos depois levou a mãe ao sanatório, HH foi ridicularizada e chamada de doida pelos amigos e especialmente por físicos de proa como César Lattes, Mário Schenberg e Newton Bernardes, aos quais solicitara apoio e referendo científico.
Qádos, que HH considerava ser seu melhor livro, escrito no prazo de um ano, é lançado em 73. Júbilo, memória, noviciado da paixão sai em 74. Em 77 publica Ficções, que recebe o prêmio da Associação Paulista de Críticos de Arte (APCA) como o melhor livro do ano. Em 80 saem os livros Poesia (1959/79), Da morte. Odes mínimas e Tu não te moves de ti. Recebe da APCA o prêmio pelo conjunto da obra.
Em 82 lança A obscena senhora D, cuja trama mistura real e imaginário ao narrar o drama existencial de Hillé, uma mulher que se refugia em seu mundo interior após a morte do marido. No ano seguinte publica Cantares de perda e predileção, que recebe os prêmios Jabuti (da Câmara Brasileira do Livro) e Cassiano Ricardo (do Clube de Poesia de São Paulo). Em 84 saem os Poemas malditos, gozosos e devotos; em 86, os livros Sobre a tua grande face e Com meus olhos de cão e outras novelas; em 89 lança Amavisse e, no ano seguinte, Alcoólicas, que refletia um momento embriagador e perigoso de sua vida.
Inconformada com a pífia vendagem de seus livros e em protesto contra as distorções do mercado editorial, HH tomou uma decisão radical em 1990: depois de ler nos jornais que a francesa Regine Deforges com o açucarado best-seller A bicicleta azul embolsara mais de US$ 10 milhões, não teve dúvida: “Como é que eu, com uma cabeça esplendorosa, não consigo nem me sustentar?”. E concebeu O caderno rosa de Lory Lambi, um livro pornográfico, feito assumidamente para ganhar dinheiro, de modo que a problemática do sexo de maneira nova, chula. Mesmo se esforçando para ser ruim, HH conseguiu compor uma pequena obra-prima ao relatar com humor o imaginário de uma tenra menina-Lolita de 8 anos, lasciva e sem pudores, que se relaciona com homens bem mais velhos que a favorecem sexual e materialmente. O depravado livro honra as mais nobres tradições da literatura erótica, na linha de autores como Sade, Bocage, Pierre Loüys e Henry Miller.Em 91, confirmaria sua opção pelo erotismo em Contos d’escárnio/textos grotestos e Cartas de um sedutor. Neste último, descreve o cotidiano de Karl, que procura, por meio do sexo, uma razão para a vida. Karl é totalmente amoral, culto e rico. Escreve e envia cartas provocatórias a Cordélia, sua irmã. Os seus escritos são descobertos no lixo por um poeta, Stamatius, cuja vida, daí em diante, se mistura com a de Karl. A apropriação mútua de personalidades é o centro desse “romance” que traduz aquilo que muitos críticos definiram como um reinventar da linguagem à maneira joyceana. A trilogia repercutiu na França, onde em 94 uma tradução de Contos d’escárnio (Contes sarcastiques) foi publicada sob o selo da L’Arpenteur, uma divisão da mítica Gallimard. Em 92 lança a antologia poética Do desejo e Bufólicas, livro de poesias pornográficas.
A crítica ficou escandalizada e em polvorosa, quase em pânico, mas logo rejubilou-se quando HH retomou a literatura “séria” e sofisticada de sempre. Em 93, retornaria à narrativa com Rútilo nada (livro que também continha A obscena senhora D e Qadós), recebendo o Prêmio Jabuti na categoria contos. Em 95, à poesia, com Cantares do sem nome e de partidas.
Em 97 lançou Estar sendo. Ter sido, reunião de alguns de seus poemas, narrativas e crônicas publicadas no jornal Correio Popular. Depois sofrer uma isquemia cerebral, HH declarou que pretendia voltar a dedicar-se à TCI, dessa vez tentando contato com os mortos por meio do aparelho de fax, e a um velho projeto, a transformação da casa onde vivia em uma fundação para estudos de fenômenos espíritas e parapsicológicos, o “Centro de Estudos da Imortalidade”. Estava convicta de que a imortalidade havia sido descoberta: “Nunca acreditei que fosse só isso: nascimento, vida, morte e apodrecimento”. Discursava sobre Marduk, um suposto planeta, “fora do espaço e do tempo”, onde viviam os imortais: “Júlio Verne mora em Marduk. Einstein também. Quero demais ir para lá. Eles estão mandando fotografias de Marduk, das casas onde moram. Júlio Verne manda as fotos via fax, desligado. Não tenho medo de falar essas coisas. Já me chamaram de tantas coisas, que sou louca varrida... Não me importo se agora me chamarem de louca, de prostituta”
Quem a visitava em sua chácara sempre a encontrava rodeada de livros, a maioria relacionada à física, à filosofia e à matemática, nas quais procurava subsídios que sustentassem a imortalidade da alma “do ponto de vista científico, não apenas metafísico”, como fazia questão de salientar. Citava o filósofo e físico romeno Stephane Lupasco (1900-88), que defendia a idéia de que a alma é feita de matéria quântica.
Durante os últimos anos de sua vida HH destilava suas preferências etílicas, queixava-se dos editores e apelava para que quitassem suas imensas dívidas com o IPTU, caso contrário teria de vender a chácara e desamparar os seus mais de oitenta cães. Dava entrevistas arrebatadoras e continuava à espera de contatos com discos voadores e com desencarnados. Em 99 lança a antologia poética Do amor, e sob a coordenação do escritor Yuri V. Santos entra no ar seu site oficial. Mais do que sua obra, sua figura excêntrica era cada vez mais popularizada e a reedição em 2000 de Cascos & carícias, um volume de crônicas, conquistou um público mais amplo, porém mais superficial e descompromissado que se divertiu com o seu humor corrosivo e sua inteligência sarcástica. Em 2002, aos 72 anos, HH finalmente teve sua obra completa (mais de quarenta livros), reeditada pela Editora Globo.
Na madrugada do dia 4 de fevereiro de 2002, HH faleceu em Campinas, aos 73 anos. Mal a notícia foi divulgada, alguns começaram a tentar entabular uma transcomunicação pelo rádio com ela, sintonizando uma faixa sem estação; quem sabe ouviriam a voz penada de sua poesia ou qualquer riso que fosse, de escancarada pornografia. “Meu pai foi o único homem que amei na vida”, dizia a escritora. “Foi ele quem me disse que a perfeição é a morte. Não será essa a maior certeza de nossa imortalidade?”
* Cláudio Tsuyoshi Suenaga é Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), consultor da Revista UFO e colaborador da Revista Sexto Sentido
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