sexta-feira, 9 de abril de 2021

Hilda Hilst: genial, mística e obscena vida, morte, loucura, sexo, Deus, espíritos e discos voadores

Vida agônica, morte, sonho, devaneio, delírio, loucura, amor, sexo, salvação e perdição, tempo e eternidade, realidade e fantasia, Deus e homem se exprimem sob diferentes roupagens e máscaras na narrativa descontínua, radical, aguçada e antinô­mica de Hilda Hilst.

por Cláudio Tsuyoshi Suenaga*


Hilda Hilst nasceu na cidade de Jaú, interior de São Paulo, em 21 de abril de 1930, filha única do fazendeiro, jornalista, poeta e ensaísta Apolônio de Almeida Prado Hilst. Depois da separação dos pais, sua mãe levou-a consigo e ao meio irmão, filho de um casamento anterior, para Santos, litoral sul paulista. 

Quando tinha 5 anos de idade, seu pai manifes­taria um quadro irreversível de esquizofrenia paranóide. Internado numa clínica em Campinas, viveria até sua morte (em 66) alternando longos períodos em sana­tórios para doentes mentais.  Hilda estudou num colégio de freiras e a experiência refletiu-se na sua dramaturgia (A possessa, Rato no muro), na narrativa (O unicórnio) e também na sua poesia. 

Em 1945 mudou-se para um apartamento na Ala­me­da Santos com Marta, a governanta, e iniciou os estudos clássicos na Escola Mackenzie. Em 46 visitou pela primeira vez o pai na Fazenda Olhos d’Água, em Jaú, levando consigo seus poemas para que ele os lesse. Nos três dias que passou no sana­tório, num clima ambíguo e nebuloso, beirando o incesto, perturbou-se com sua loucura. Em Carta ao pai, escreveu mais tarde, relembran­do o encontro: “Só três noites de amor, só três noites de amor” implo­rava o pai, confundindo-a com a mãe. Aquele homem desesperado e tomado pela demência, pálida som­bra do galã intelectual que escrevia poesia e crítica literária para um jor­nal de Jaú, não conseguiu ler os poemas da filha. Viu nela somente a imagem do amor que não se conformava em ter perdido... 

Em 48, HH ingressa na Faculdade de Direito do Largo São Francisco. A cidade fervilhava de agita­ções artísticas e ela mergulha de cabeça nesse cau­dal. Com sua inteligência, diáfana beleza, elegância e temperamento apimentado, fogoso e atrevido, avan­çado demais para os padrões da provinciana socie­dade paulistana de antanho, desperta inúmeras pai­xões e contrariedades. Em 50 lança seu primeiro livro, Presságio, seguido de Balada de Alzira no ano seguinte. Formada em 52, a jovem bacharel exerce durante alguns meses a advocacia, profissão que, conforme confessou, a deixou “apavorada”.

Decididamente sua personalidade e interesses não se compatibilizavam com uma carreira dedicada às leis e à magistratura. Optou por viajar, primeiro para a Argentina e Chile. Em 55 publica Balada do festival. Em 57 parte para a Europa e permanece seis meses em Paris freqüentando cassinos, festas, boates, shows e conhecendo artistas. Marlon Brando filmava na capital francesa Os deuses vencidos, de Edward Dmytryk. HH, tiara de brilhantes pendurada na testa, enver­gan­do um vestido de Christian Dior, muitos martinis na cabeça, subornou o porteiro do Hotel Ritz e bateu à porta do apartamento do astro. Disse-lhe, à queima-roupa: “Monsieur Brando, sou uma jornalista brasileira e quero-o. Vim de longe para isso”. Brando, aos 33 anos, oxigenado, baixo, de “foulard” e “chambre” de seda cor de vinho, longe do magne­tismo selvagem e rebel­de, não quis aquela encren­ca. Mas muitos outros como Dean Martin, Jeff Chandler, Tony Curtis e o milionário Howard Hughes, quise­ram. Carlos Drummond de Andrade – que lhe escrevia car­tas apaixona­das, lhe dedicava poemas sen­suais e a seguia pelas ruas do Rio de Janeiro – e Vini­cius de Moraes também, mas estes, apesar de monstros sagra­dos da literatura, HH dispensou. 

Em 59 publica Roteiro do silêncio e Trovas de muito amor para um amado senhor. José Antônio de Almeida Prado, primo da escritora, inspira-se nos poe­mas desse último livro e compõe a Canção para soprano e piano. Em outras oportuni­dades volta a basear-se em textos de HH para compor alguns de seus trabalhos mais significativos. Adoniran Barbosa (Quando te achei) e Gilberto Mendes (Trovas), entre outros, também se inspiraram em textos da autora. Ode fragmentária  é lançado em 61. Trovas de muito amor para um amado senhor é reeditado por Massao Ohno. Em 62, ganha o Prêmio Pen Club de São Paulo pelo livro Sete cantos do poeta para o anjo

A leitura de Carta a El Greco, de Nikos Kazan­tzákis, autor de Zorba, o Grego, a impressiona tão fortemente que resolve  abando­nar a vida boêmia e o intenso convívio social para se dedicar inteira­mente à literatura. Em 66, HH conhece o escultor Dante Casarini e no dia 24 de junho se refugia com ele na chácara São José, no Parque Xangrilá, a 11 km de Campinas, iniciando nessa propriedade que pertencia à sua mãe, a construção da futura Casa do Sol, “monastério” e fronteira de vários mundos, onde viveria até o fim da vida, sempre rodeada de livros, cães e gatos vira-latas e assediada por jorna­listas, diretores teatrais, professores, místicos, para­psicólogos, atores, escritores etc.

DISCOS VOADORES E TRANSCOMUNICAÇÃO

Em 1967 vivenciou um “fato extraordinário” que daria impulso criativo à sua vida: certa noite, indu­zida por uma voz misteriosa, saiu ao jardim da chácara e viu uma enorme bola de fogo, que se aproximou dela e deixou-a paralizada. Quando contou aos amigos que vira de perto um disco voa­dor foi chamada de louca, mas a partir daí escre­veu como nunca. Foram várias peças de teatro em dois anos: O verdugo ganhou o prêmio Anchie­ta de 69 e, logo depois, sem ter tempo nem de res­pirar, a ficção em 70. Um especialista em OVNIs disse-lhe que ela estava a toda porque foi “ener­giza­da” por aquele disco! 

Nesta época, HH redige A possessa e O rato no muro, iniciando a série de oito peças teatrais, com­ple­mentada por O visitante, Auto da barca de Camiri, O novo sistema e As aves da noite, e finalizada em 69 com O verdugo e A morte do patriarca. Em 70 publi­ca o seu primeiro livro de pro­sa, Fluxo-floema, reco­nhecido como totalmente inovador. 

HH contava que avistou discos voadores em mais duas ocasiões. Certo dia, como andava obce­cada demais com o assunto, seu marido Dante resol­veu levá-la ao cinema, para distraí-la. Quando ia entrar no carro, viu uma “estrela azul, azul” e falou ao marido que era besteira ir ao cinema, já que “eles podem voltar”. Mal acabou de falar e a estrela, na verdade uma “enorme bola azul”, desceu e ficou pairando perto do muro da casa. A última vez teria sido em seu quarto.

Desde sempre preocupada “com essa coisa terrível – a morte, um mergulho no nada”, e imbuída da “certeza definitiva da imortalidade da alma”, HH iria realizar, ao longo da década que se iniciava, uma série de experiências no campo da TCI (TransComuni­ca­tion Instrumental) ou EVP (Electronic Voice Pheno­m­e­non) baseando-se nas pesquisas do arqueólogo, filósofo e multimídia sueco Friedrich Jürgenson (1903-1987), autor dos livros Telefone para o além e Rádio-link com os mortos. HH passou a esparramar grava­dores de rolo pela sua chácara, deixando-os ligados. Trocou-os depois por gravadores cassetes acoplados a rádios sintonizados entre duas estações. Foi assim que captou e gravou vozes enigmáticas pronuncian­do palavras e fragmen­tos de frases, algumas, segundo ela, com até doze vocábulos. 

A grande atração do V Colóquio Brasileiro de Parapsicologia, realizado em 1977, no auditório do Sesc em São Paulo, era a sessão das chamadas vozes parafísicas ou psicofônicas, com trabalhos apresen­tados por HH e George Magyary. 

Portando o estigma congênito da loucura, que destruiu a vida do pai, e anos depois levou a mãe ao sanatório, HH foi ridicularizada e chamada de doida pelos amigos e especialmente por físicos de proa como César Lattes, Mário Schenberg e Newton Bernardes, aos quais solicitara apoio e referendo científico. 

Qádos, que HH considerava ser seu melhor livro, escrito no prazo de um ano, é lançado em 73. Júbilo, memória, noviciado da paixão  sai em 74. Em 77 publ­ica Ficções, que recebe o prêmio da Associa­ção Paulista de Críticos de Arte (APCA) como o melhor livro do ano. Em 80 saem os livros Poesia (1959/79), Da morte. Odes mínimas  e Tu não te moves de ti. Recebe da APCA o prêmio pelo conjunto da obra. 

Em 82 lança A obscena senhora D, cuja trama mistura real e imaginário ao narrar o drama existen­cial de Hillé, uma mulher que se refugia em seu mundo interior após a morte do marido. No ano seguinte publica Cantares de perda e predileção, que recebe os prêmios Jabuti (da Câmara Brasileira do Livro) e Cassia­no Ricardo (do Clube de Poesia de São Paulo). Em 84 saem os Poemas malditos, gozosos e devotos; em 86, os livros Sobre a tua grande face e Com meus olhos de cão e outras novelas; em 89 lança Amavisse e, no ano seguinte, Alcoólicas, que refletia um momento embriagador e perigoso de sua vida.

Inconformada com a pífia vendagem de seus livros e em protesto contra as distorções do merca­do editorial, HH tomou uma decisão radical em 1990: depois de ler nos jornais que a francesa Regine Defor­ges com o açucarado best-seller A bicicleta azul embolsara mais de US$ 10 milhões, não teve dúvida: “Como é que eu, com uma cabeça esplendorosa, não consigo nem me sustentar?”. E concebeu O caderno rosa de Lory Lambi, um livro pornográfico, feito as­sumidamente para ganhar dinheiro, de modo que a problemática do sexo de maneira nova, chula. Mes­mo se esforçando para ser ruim, HH conseguiu com­por uma pequena obra-prima ao relatar com humor o imaginário de uma tenra menina-Lolita de 8 anos, lasciva e sem pudo­res, que se relaciona com homens bem mais velhos que a favorecem sexual e material­mente. O depra­vado livro honra as mais nobres tradições da litera­tura erótica, na linha de autores como Sade, Bocage, Pierre Loüys e Henry Miller.

Em 91, confirmaria sua opção pelo erotismo em Contos d’escá­r­nio/textos grotestos e Cartas de um sedutor. Neste último, descreve o cotidia­no de Karl, que procura, por meio do sexo, uma razão para a vida. Karl é totalmente amoral, culto e rico. Escreve e envia cartas provocatórias a Cordélia, sua irmã. Os seus escritos são desco­bertos no lixo por um poeta, Stamatius, cuja vida, daí em diante, se mistura com a de Karl. A apro­priação mútua de persona­li­dades é o centro desse “romance” que traduz aquilo que muitos crí­ti­cos definiram como um rein­ventar da linguagem à maneira joyceana. A trilogia repercutiu na França, onde em 94 uma tradução de Contos d’escárnio (Contes sarcasti­ques) foi publicada sob o selo da L’Arpenteur, uma divisão da mítica Gallimard. Em 92 lança a antologia poética Do desejo e Bufólicas, livro de poesias pornográ­ficas.  

A crítica ficou escandalizada e em polvorosa, quase em pânico, mas logo rejubilou-se quando HH retomou a literatura “séria” e sofisticada de sempre. Em 93, retornaria à narrativa com Rútilo nada (livro que também continha A obscena senhora D e Qadós), recebendo  o Prêmio Jabuti na categoria contos. Em 95, à poesia, com Cantares do sem nome e de partidas.  

Em 97 lançou Estar sendo. Ter sido, reunião de alguns de seus poemas, narrativas e crônicas publicadas no jornal Correio Popular. Depois sofrer uma isquemia cerebral, HH declarou que pretendia voltar a dedicar-se à TCI, dessa vez tentando contato com os mortos por meio do aparelho de fax, e a um velho projeto, a transfor­mação da casa onde vivia em uma fundação para estudos de fenômenos espíritas e parapsicoló­gicos, o “Centro de Estudos da Imortalidade”. Estava convicta de que a imortalidade havia sido descoberta: “Nunca acreditei que fosse só isso: nascimento, vida, morte e apodrecimento”. Dis­cursava sobre Marduk, um suposto planeta, “fora do espaço e do tempo”, onde viviam os imortais: “Júlio Verne mora em Marduk. Einstein também. Quero demais ir para lá. Eles estão man­dando fotografias de Marduk, das casas onde moram. Júlio Verne manda as fotos via fax, desli­gado. Não tenho medo de falar essas coisas. Já me chamaram de tantas coisas, que sou louca varrida... Não me importo se agora me chamarem de louca, de prostituta”  

Quem a visitava em sua chácara sempre a encon­trava rodeada de livros, a maioria relacionada à físi­ca, à filosofia e à matemática, nas quais procurava subsídios que sustentassem a imorta­lidade da alma “do ponto de vista científico, não apenas metafísico”, como fazia questão de salientar. Citava o filósofo e físico romeno Stephane Lupasco (1900-88), que defendia a idéia de que a alma é feita de matéria quântica. 

Durante os últimos anos de sua vida HH destilava suas preferências etílicas, queixava-se dos editores e apelava para que quitassem suas imensas dívidas com o IPTU, caso contrário teria de vender a chácara e desamparar os seus mais de oitenta cães. Dava entrevistas arrebatadoras e con­tinuava à espera de contatos com discos voadores e com desencar­nados. Em 99 lança a antologia poética Do amor, e sob a coordenação do escritor Yuri V. Santos entra no ar seu site oficial. Mais do que sua obra, sua figura excêntrica era cada vez mais popularizada e a reedição em 2000 de Cascos & carícias, um volume de crônicas, conquistou um público mais amplo, porém mais superficial e descompromissado que se divertiu com o seu humor corrosivo e sua inteligência sarcástica. Em 2002, aos 72 anos, HH finalmente teve sua obra completa (mais de quarenta livros), reeditada pela Editora Globo. 

Na madrugada do dia 4 de fevereiro de 2002, HH faleceu em Campinas, aos 73 anos. Mal a notícia foi divulgada, alguns começaram a tentar entabular uma transcomunicação pelo rádio com ela, sinto­nizando uma faixa sem estação; quem sabe ouviriam a voz penada de sua poesia ou qualquer riso que fosse, de escancarada porno­grafia. “Meu pai foi o único homem que amei na vida”, dizia a escritora. “Foi ele quem me disse que a perfeição é a morte. Não será essa a maior certeza de nossa imortali­dade?”

* Cláudio Tsuyoshi Suenaga é Mestre em História pela Universidade Estadual Paulista (Unesp), consultor da Revista UFO e colaborador da Revista Sexto Sentido



Nenhum comentário:

Postar um comentário