sexta-feira, 9 de abril de 2021

As peripécias de uma obra-prima perdida e reencontrada

Uma inusitada conjuração de acasos fez com que uma obra-prima da literatura
fantástica se perdesse por décadas, o que não impediu que fosse largamente plagiada. O livro Manuscrito encontrado em Saragoça tem uma história tão conturbada quanto a biografia de seu autor, o nobre polonês Jean Potocki.

Bira Câmara

Manuscrito encontrado em Saragoça (1804), um dos melhores ro­man­­­ces fantásticos de todos os tempos, fi­cou desaparecido por décadas. O ma­nuscrito original se perdeu e nes­se intervalo de tempo, uma ver­são dele foi parar na mão de vários es­critores que o plagiaram. O texto che­gou a ser atribuído ao lendário Con­de de Cagliostro e ao escritor fran­cês Charles Nodier. Até mesmo o cé­lebre escritor norte-americano Washington Irving apropriou-se de um de seus capítulos para escrever The Grand Prior of Malta (1855), tra­dução de uma das histórias narra­das no Manuscrito. A autoria da obra só ficou estabele­cida em 1842, de­pois de rumoroso processo: o con­de Jean Potocki (1761-1815), des­cen­­dente de uma ilustre família polo­nesa era o verdadeiro autor. 

Jan Potocki
A história de sua vida não é menos acidentada que a de seu romance: erudito, arqueólogo, historiador, aven­­tureiro e excêntrico, sobre­voou os céus de Varsóvia em 1788 a bordo de um balão na companhia do aero­nauta Jean-Pierre-François Blan­chard. Uma aventura perigosí­ssima na época, pois quatro anos antes o balonista Pilâtre du Rozier foi quei­mado vivo com o seu passa­geiro... Na França, Potocki frequen­tou os mais avançados salões e ligou-se aos jacobinos. Montou uma tipo­gra­fia que usou para ma­nifestar-se con­tra a monarquia e ao mesmo tem­po ri­dicularizar os de­mo­cratas. Espírito aventureiro, per­correu o mun­do, de Marrocos até os confins da Mongó­lia. Lutou con­tra os russos e tor­nou-se conse­lheiro par­ti­cular do czar Ale­xandre I.

Potocki escreveu o seu romance em fran­cês e o terminou pou­­co an­tes de mor­rer. Em 1805 havia pu­blicado 100 exem­plares da primeira par­te dessa obra (156 páginas) na Rússia, antes de viajar para a China. Ao regressar, em 1806, não deu se­quência à impres­são do seu roman­ce. Muitos exemplares cir­­cularam nos salões literários de São Pe­ters­­bur­go; em 1809 foi traduzido e pu­bli­cado na Alemanha. A fama da obra cresceu e a segunda parte foi publi­cada em Paris em 1813, com o título de Avadoro, História Espanhola, por M.L.C.J.P. (Monsieur Le Comte Jean Potocki).

Em 1822, Charles Nodier publi­cou um livro de histórias de fantas­mas e vampiros, Infernaliana, que re­sume uma das histórias do Manus­crito: as Aventuras de Thibaud de La Jacquière

Ilustração da edição polonesa do Manuscrito
Outro escritor francês, Maurice Cou­­sin (sob o pseudônimo de con­de de Couchamps), apropriou-se na ín­tegra de outra parte da obra de Potocki e publicou-a como memó­rias apócrifas de Cagliostro, em 1834-35. Em 1841, Couchamps voltou a pu­blicar outras histórias do Manus­crito em série, dessa vez no jornal La Presse. O plágio foi denun­ciado logo em seguida pelo jornal Le National e era tão evidente que o La Presse abriu um processo contra Couchamps, pois lhe pagava 100 francos por capítulo, acreditando-os inéditos. No processo, que causou sen­sação na França, o advogado do jornal apresentou como prova um exemplar do romance de Potocki, impresso em 1805 em São Peters­burgo e, com isso, o plagiário foi des­mascarado. O processo serviu pa­ra atrair a atenção sobre a obra de Potocki, que havia caído no esque­cimento. Mesmo assim, em 1855, Washington Irving traduziu na ín­tegra a História do Comendador de Toralva, que faz parte do Manuscrito, com o título de The Grand Prior of Malta. Irving faz menção, na intro­dução, a Cagliostro como su­pos­to au­tor desse texto. 

Em 1847, o livro de Potocki foi tra­duzido para o polonês e publi­cado em Leipzig com o título defini­tivo de Manuscrito encontrado em Sa­ra­goça, versão integral em seis volumes. Inicialmente, o autor o cha­mava de Dias Espanhóis. Essa mesma tradução foi reeditada em 1857, com uma biografia do autor. Como o tex­to completo francês se perdeu, a ver­são polonesa é a única existente. Des­de então, o livro teve várias edi­ções, consagrando-se como um clás­sico da literatura fantástica.

O autor


O destino editorial do romance guarda inusitada seme­lhança com a vida do autor. Se vivesse hoje, Poto­cki seria sem dúvida multimídia: aven­tureiro, diplomata, lin­güista, ar­queólogo, his­to­riador, via­jante in­can­sável, adversário dos russos e depois con­selheiro do Czar Alexan­dre I. Pa­ra se ter uma ideia de sua im­portância como eru­­dito, ele é con­­siderado o fun­dador da arqueo­logia es­lava.

Nascido em 8 de março de 1761, es­­tudou em Ge­nebra e Lausanne, e des­­de cedo apaixonou-se pelo estu­do da história. Viajou pela Itália e Si­­c­ília, e dedicou alguns anos à car­rei­ra mili­tar, partici­pando em 1779 de expe­di­ções contra piratas em Mal­ta. Retomando a vi­da civil, dedicou-se ao estu­do da pré-história esla­va, en­quanto conhecia a Tu­ní­sia, a Tur­quia, a Gré­cia, o Egito e a Sérvia. Viveu em Paris por volta de 1785-87. Na França pré-revolucio­nária, fre­quen­­tou a socie­dade, pes­quisou biblio­tecas, dis­cutiu filosofia nos me­lhores salões e ade­riu ao iluminismo. Foi par­tidário entusiasta de Diderot, de Hol­bach, de Helvetius e La Mettrie. O curioso é que também frequentou uma confraria mística, que pregava um espiritualismo sincretista e da qual fazia parte o futuro Czar Paulo I.

Em 78, de volta para a Polônia, montou na sua casa uma tipografia livre, editando brochuras liberais, an­ticlericais e revolucionárias, além de imprimir suas obras sobre história e relatos de suas viagens.

Em 91 viajou ao Marrocos e à Es­panha; quando esteve em Tanger, a cidade foi bombardeada por uma esquadra espanhola. De volta à Fran­ça, foi recebido por Condorcet e La Fayette, e introduzido no clube dos Jacobinos, onde discursou e acabou aclamado como o “cidadão conde”. Vol­tou à Polônia na companhia de um agente do rei polonês, chamado Mazzei, que combatera na guerra de Independência americana. Da sua es­tadia no Marrocos, na corte do sultão Moulay-Yesid, registrou im­pressões e lembranças, que reuniu na obra Via­gem ao Marrocos. Nessa época com­bate os russos, em guerra pela disputa de uma província polonesa. Com o fim da campanha, escreve esquetes satíricos de teatro; num deles ironiza os oradores revo­lucionários que viu na França e o decepcionaram. Nos anos seguin­tes publicou livros de ar­queologia esla­va e história em vários países, viajou pela Ucrânia, Cáu­caso, Itália, parti­cipou de uma expedição cien­tífica russa na Mongólia. Nos úl­timos anos antes de sua morte, Poto­cki retirou-se para sua propriedade no interior da Polônia, de onde só saía para fazer pesquisas na biblio­teca. Além de neurastênico, sofria de profunda depressão nervosa e do­lorosas ne­vralgias. Passou os últi­mos dias de sua vida limando uma bo­la de prata do seu bule de chá. Quando chegou ao tamanho deseja­do, pediu a um capelão que a ben­zesse, enfiou-a no cano de sua pistola e deu um tiro na própria cabeça.

Depois de sua morte, em 1818 o seu nome foi dado a um arquipélago na baía da Coréia, mas, por mais uma ironia do destino, a deno­minação de ilhas Potocki não foram mantidas nos atlas modernos... 

A obra, dualismo entre erotismo e horror


O Manuscrito compõe-se de uma sucessão de histórias distribuídas por sessenta e seis “dias” à moda dos an­ti­gos heptamerons ou deca­me­rons, ligadas entre si por uma trama central. A exemplo do romance Vathek (1786), de William Beckford, e ou­tras obras desse período, tem gran­de in­fluência das narrativas do Ori­ente, como as Mil e Uma Noites. Aliás, conta-se que quando sua mu­lher adoe­ceu, Potocki lia esse clássi­co diariamente pa­ra a distrair. Ao terminar a leitura ela lhe pediu mais narrativas do mes­mo gênero e, as­sim, Potocki pas­sou a escrever um ca­pítulo por dia e à noite o lia para ela. 

Ilustração da abertura do filme polonês baseado na obra de Potocki

Como típico exemplar do roman­ce gótico, desde as primeiras páginas o Manuscrito recorre ao fan­tástico, ao non sense e às aparições fan­tas­magó­ricas. O gosto pelo as­sus­tador, pelo macabro, pelo exa­gero, ante­cipa a voga romântica e a ruptura com o classicismo. Mas a am­bien­tação é to­da do século XVIII, com cenas de galanteio, imora­li­dade dos costumes, o gosto pelo ocul­­tismo, cabala e astrologia.

Ma­­li­cio­samente, o livro passa do sobre­natural, do erótico para o picaresco. Potocki lança mão do recurso de re­petir a mesma his­tória, para a “desvelar” e desdobrá-la habilmente, subs­tituin­do um per­sonagem por outro em relatos que vão se encai­xando. O mesmo tema se repete, a mes­ma situação é contada, mas com novas nuances, como se refletidos por um espelho fatídico. Assim, os fantasmas na ver­dade são gente viva disfarçada e o que inspirava terror não passa de um engenhoso meca­nismo.
 
Potocki era um iluminista, um ho­mem do século XVIII; o espírito des­se século tem a ambivalência da fé e da razão, da superstição e da ciên­cia, da libertinagem e do galanteio espirituoso, e esse espí­rito está pre­sente também na novela de Potocki. Para ele o sobrenatural e o milagre não passavam de alucinação e ilu­sio­­nismo, que a razão explica. Num clima de erotismo e mistério, duas persona­gens femininas, uma prince­sa e sua dama de honra, se confun­dem com as primas do herói. Mas essa troca de papéis não fica só nisso: o leitor nunca sabe ao certo se essas duas personagens são na verdade uma só ou duas, duplicidade que, aliás, o cineasta Buñuel viria a explorar em Esse Obscuro Objeto do Desejo. O artifício de recontar a mes­ma história do começo ao fim, bem como o tema do duplo, foi usado, tam­bém, por Hoffmann em L’Elixir du diable (1829), outro marco da lite­ratura gótica-fantástica. Nesta nove­la, onde também o personagem revi­ve a mesma situação, há um doublé que participa da trama, mas que o leitor é levado a não saber ao certo se é um único personagem às voltas com seu alter ego criminoso ou duas pes­soas distintas.

Dada a erudição do autor, Roger Caillois especula sobre a tese de que o Manuscrito faria uma defesa velada dos Enciclopedistas e que se trata, so­bre­tudo, “de um tratado polêmico disfarçado em obra romanesca”. Com efeito, Potocki  aponta no seu li­­vro muitas semelhanças entre dog­mas e rituais cristãos e crenças ou práticas muito antigas. Sob o véu da ficção, a obra seria na verdade um cur­so de história comparada das religiões e a apologia de uma moral ra­cional e isenta de preconceitos, bem ao gosto dos pensadores ilumi­nistas. Esse tipo de especulação dá bem uma medida do talento e da ge­nialidade do autor. Conjecturas à par­te, é inegável o mérito literário do Manuscrito, que ressurgiu depois de quatro décadas desaparecido, sobre­viveu aos seus plagiários e atraves­sou o tempo mantendo-se até hoje como um dos maiores romances da literatura francesa.

Em 1964 o Manuscrito foi levado ao cinema numa produção polonesa, com direção de Wojciech Has, e pode ser visto com legendas em português no link abaixo:

Bibliografia:

Existem várias edições brasileiras do Manuscrito, mas a mais fiel ao texto original é a da Ed. Brasiliense (1988), tradução de Lília Ledon da Silva e prefácio de Roger Caillois, do qual foi extraída a maior parte das informações biográficas de Potocki. A edição de 1965, pela desaparecida editora GRD, do Rio de Janeiro, tem uma capa horrível, mas uma ótima tradução de José Sanz. Também merece destaque a edição portuguesa da Editorial Estampa (1977), tradução de Ana Maria Alves. 

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