Uma inusitada conjuração de acasos fez com que uma obra-prima da literatura
fantástica se perdesse por décadas, o que não impediu que fosse largamente plagiada. O livro Manuscrito encontrado em Saragoça tem uma história tão conturbada quanto a biografia de seu autor, o nobre polonês Jean Potocki.
Bira Câmara
Manuscrito encontrado em Saragoça (1804), um dos melhores romances fantásticos de todos os tempos, ficou desaparecido por décadas. O manuscrito original se perdeu e nesse intervalo de tempo, uma versão dele foi parar na mão de vários escritores que o plagiaram. O texto chegou a ser atribuído ao lendário Conde de Cagliostro e ao escritor francês Charles Nodier. Até mesmo o célebre escritor norte-americano Washington Irving apropriou-se de um de seus capítulos para escrever The Grand Prior of Malta (1855), tradução de uma das histórias narradas no Manuscrito. A autoria da obra só ficou estabelecida em 1842, depois de rumoroso processo: o conde Jean Potocki (1761-1815), descendente de uma ilustre família polonesa era o verdadeiro autor.
Jan Potocki |
Potocki escreveu o seu romance em francês e o terminou pouco antes de morrer. Em 1805 havia publicado 100 exemplares da primeira parte dessa obra (156 páginas) na Rússia, antes de viajar para a China. Ao regressar, em 1806, não deu sequência à impressão do seu romance. Muitos exemplares circularam nos salões literários de São Petersburgo; em 1809 foi traduzido e publicado na Alemanha. A fama da obra cresceu e a segunda parte foi publicada em Paris em 1813, com o título de Avadoro, História Espanhola, por M.L.C.J.P. (Monsieur Le Comte Jean Potocki).
Em 1822, Charles Nodier publicou um livro de histórias de fantasmas e vampiros, Infernaliana, que resume uma das histórias do Manuscrito: as Aventuras de Thibaud de La Jacquière.
Ilustração da edição polonesa do Manuscrito |
Em 1847, o livro de Potocki foi traduzido para o polonês e publicado em Leipzig com o título definitivo de Manuscrito encontrado em Saragoça, versão integral em seis volumes. Inicialmente, o autor o chamava de Dias Espanhóis. Essa mesma tradução foi reeditada em 1857, com uma biografia do autor. Como o texto completo francês se perdeu, a versão polonesa é a única existente. Desde então, o livro teve várias edições, consagrando-se como um clássico da literatura fantástica.
O autor
O destino editorial do romance guarda inusitada semelhança com a vida do autor. Se vivesse hoje, Potocki seria sem dúvida multimídia: aventureiro, diplomata, lingüista, arqueólogo, historiador, viajante incansável, adversário dos russos e depois conselheiro do Czar Alexandre I. Para se ter uma ideia de sua importância como erudito, ele é considerado o fundador da arqueologia eslava.
Nascido em 8 de março de 1761, estudou em Genebra e Lausanne, e desde cedo apaixonou-se pelo estudo da história. Viajou pela Itália e Sicília, e dedicou alguns anos à carreira militar, participando em 1779 de expedições contra piratas em Malta. Retomando a vida civil, dedicou-se ao estudo da pré-história eslava, enquanto conhecia a Tunísia, a Turquia, a Grécia, o Egito e a Sérvia. Viveu em Paris por volta de 1785-87. Na França pré-revolucionária, frequentou a sociedade, pesquisou bibliotecas, discutiu filosofia nos melhores salões e aderiu ao iluminismo. Foi partidário entusiasta de Diderot, de Holbach, de Helvetius e La Mettrie. O curioso é que também frequentou uma confraria mística, que pregava um espiritualismo sincretista e da qual fazia parte o futuro Czar Paulo I.
Em 78, de volta para a Polônia, montou na sua casa uma tipografia livre, editando brochuras liberais, anticlericais e revolucionárias, além de imprimir suas obras sobre história e relatos de suas viagens.
Em 91 viajou ao Marrocos e à Espanha; quando esteve em Tanger, a cidade foi bombardeada por uma esquadra espanhola. De volta à França, foi recebido por Condorcet e La Fayette, e introduzido no clube dos Jacobinos, onde discursou e acabou aclamado como o “cidadão conde”. Voltou à Polônia na companhia de um agente do rei polonês, chamado Mazzei, que combatera na guerra de Independência americana. Da sua estadia no Marrocos, na corte do sultão Moulay-Yesid, registrou impressões e lembranças, que reuniu na obra Viagem ao Marrocos. Nessa época combate os russos, em guerra pela disputa de uma província polonesa. Com o fim da campanha, escreve esquetes satíricos de teatro; num deles ironiza os oradores revolucionários que viu na França e o decepcionaram. Nos anos seguintes publicou livros de arqueologia eslava e história em vários países, viajou pela Ucrânia, Cáucaso, Itália, participou de uma expedição científica russa na Mongólia. Nos últimos anos antes de sua morte, Potocki retirou-se para sua propriedade no interior da Polônia, de onde só saía para fazer pesquisas na biblioteca. Além de neurastênico, sofria de profunda depressão nervosa e dolorosas nevralgias. Passou os últimos dias de sua vida limando uma bola de prata do seu bule de chá. Quando chegou ao tamanho desejado, pediu a um capelão que a benzesse, enfiou-a no cano de sua pistola e deu um tiro na própria cabeça.
Depois de sua morte, em 1818 o seu nome foi dado a um arquipélago na baía da Coréia, mas, por mais uma ironia do destino, a denominação de ilhas Potocki não foram mantidas nos atlas modernos...
A obra, dualismo entre erotismo e horror
O Manuscrito compõe-se de uma sucessão de histórias distribuídas por sessenta e seis “dias” à moda dos antigos heptamerons ou decamerons, ligadas entre si por uma trama central. A exemplo do romance Vathek (1786), de William Beckford, e outras obras desse período, tem grande influência das narrativas do Oriente, como as Mil e Uma Noites. Aliás, conta-se que quando sua mulher adoeceu, Potocki lia esse clássico diariamente para a distrair. Ao terminar a leitura ela lhe pediu mais narrativas do mesmo gênero e, assim, Potocki passou a escrever um capítulo por dia e à noite o lia para ela.
Ilustração da abertura do filme polonês baseado na obra de Potocki |
Como típico exemplar do romance gótico, desde as primeiras páginas o Manuscrito recorre ao fantástico, ao non sense e às aparições fantasmagóricas. O gosto pelo assustador, pelo macabro, pelo exagero, antecipa a voga romântica e a ruptura com o classicismo. Mas a ambientação é toda do século XVIII, com cenas de galanteio, imoralidade dos costumes, o gosto pelo ocultismo, cabala e astrologia.
Maliciosamente, o livro passa do sobrenatural, do erótico para o picaresco. Potocki lança mão do recurso de repetir a mesma história, para a “desvelar” e desdobrá-la habilmente, substituindo um personagem por outro em relatos que vão se encaixando. O mesmo tema se repete, a mesma situação é contada, mas com novas nuances, como se refletidos por um espelho fatídico. Assim, os fantasmas na verdade são gente viva disfarçada e o que inspirava terror não passa de um engenhoso mecanismo.
Potocki era um iluminista, um homem do século XVIII; o espírito desse século tem a ambivalência da fé e da razão, da superstição e da ciência, da libertinagem e do galanteio espirituoso, e esse espírito está presente também na novela de Potocki. Para ele o sobrenatural e o milagre não passavam de alucinação e ilusionismo, que a razão explica. Num clima de erotismo e mistério, duas personagens femininas, uma princesa e sua dama de honra, se confundem com as primas do herói. Mas essa troca de papéis não fica só nisso: o leitor nunca sabe ao certo se essas duas personagens são na verdade uma só ou duas, duplicidade que, aliás, o cineasta Buñuel viria a explorar em Esse Obscuro Objeto do Desejo. O artifício de recontar a mesma história do começo ao fim, bem como o tema do duplo, foi usado, também, por Hoffmann em L’Elixir du diable (1829), outro marco da literatura gótica-fantástica. Nesta novela, onde também o personagem revive a mesma situação, há um doublé que participa da trama, mas que o leitor é levado a não saber ao certo se é um único personagem às voltas com seu alter ego criminoso ou duas pessoas distintas.
Dada a erudição do autor, Roger Caillois especula sobre a tese de que o Manuscrito faria uma defesa velada dos Enciclopedistas e que se trata, sobretudo, “de um tratado polêmico disfarçado em obra romanesca”. Com efeito, Potocki aponta no seu livro muitas semelhanças entre dogmas e rituais cristãos e crenças ou práticas muito antigas. Sob o véu da ficção, a obra seria na verdade um curso de história comparada das religiões e a apologia de uma moral racional e isenta de preconceitos, bem ao gosto dos pensadores iluministas. Esse tipo de especulação dá bem uma medida do talento e da genialidade do autor. Conjecturas à parte, é inegável o mérito literário do Manuscrito, que ressurgiu depois de quatro décadas desaparecido, sobreviveu aos seus plagiários e atravessou o tempo mantendo-se até hoje como um dos maiores romances da literatura francesa.
Em 1964 o Manuscrito foi levado ao cinema numa produção polonesa, com direção de Wojciech Has, e pode ser visto com legendas em português no link abaixo:
Bibliografia:
Existem várias edições brasileiras do Manuscrito, mas a mais fiel ao texto original é a da Ed. Brasiliense (1988), tradução de Lília Ledon da Silva e prefácio de Roger Caillois, do qual foi extraída a maior parte das informações biográficas de Potocki. A edição de 1965, pela desaparecida editora GRD, do Rio de Janeiro, tem uma capa horrível, mas uma ótima tradução de José Sanz. Também merece destaque a edição portuguesa da Editorial Estampa (1977), tradução de Ana Maria Alves.
Nenhum comentário:
Postar um comentário