sexta-feira, 9 de abril de 2021

O conto da Serpente Verde, um enigma de Goethe

Uma obra que é um fino manjar para os apreciadores da boa literatura, engajada na temática alquímica, mas passando longe das fórmulas fáceis e da moral duvidosa de preten­sos mestres com seus falsos magos e alquimistas. 

Texto de Bira Câmara


Goethe, gênio e predestinado

Johann Wol­f­gang Von Goe­­the, escritor, romancista, dramaturgo e filósofo alemão, além dos assuntos mundanos que ocupam os comuns mortais, tinha tam­bém um aguçado interesse pelo misticismo. Observador apai­­xo­nado de tudo o que se pode ver, ao mesmo tempo nu­tria uma curiosidade inquieta pelo invisível, e era dotado de “um pressentimento extraordinariamente consciente e sagaz do mundo oculto” (1). De onde lhe veio isso? De sua natureza profunda, e também da importância que sua mãe dedicava aos horóscopos e às predições astrológicas. Ela também recorria às vezes à biblio­man­cia, arte divi­natória que consiste em sacar ao acaso alguma frase da Bíblia para resolver alguma questão. Seu avô, embora fosse um burguês racional e ponderado, era uma espécie de vidente, de profeta.

Quando criança, o próprio Goethe era atormentado frequentemente por pesadelos, dos quais só se livrava quando alguém ressoava nos seus ouvidos um si­ni­nho de prata que o recon­duzia à paz e à calma no meio dos terrores no­turnos. A familiaridade com o sobrenatural era alimentada pelos contos de fadas, contados pelos seus pais e avós, além daqueles que ele mesmo inventava para divertir seus colegas. Assim o seu biógrafo Marcel Brion se refere a esse talento precoce de Goe­the: “O adolescente que divertia seus amigos com semelhantes his­tórias era incontestavelmente, antes de qualquer iniciação prática, um iluminado, um mago.”

Desde cedo ele tinha consciência, sem falsa modéstia ou orgulho, de “que não era uma pessoa como as outras”. Conhecia o seu horóscopo e costumava dizer com uma pertur­badora simplicidade: “os astros não me esqueceram”. E, de fato, quando nasceu, os planetas que presidiram o seu nascimento eram os mais favoráveis, e todo o seu destino futuro seria mar­cante. “Sob um céu em que Júpiter e Vê­nus sorriam e o sol iluminava a aurora desta criança, nascida em pleno meio-dia, num dos dias mais quentes do verão, em 28 de agosto de 1749.” (2)

Ainda na adolescência, levado pe­la sua insaciá­vel curiosidade por mistérios, Goethe solicitou admissão em uma “loja maçônica arcadiana”. Tinha apenas quinze anos e foi recusado. Mais do que o anseio juvenil e romanesco de ingressar numa sociedade secreta, ele ansiava descobrir verdades profundas e desvendar os segredos das gran­des questões metafí­sicas. Mas somente depois de adulto conseguiria finalmente ser iniciado na Loja Amália de Weimar.

Por tudo isso, não causa estranheza que o mistério maçônico acabasse se tornando o tema de uma de suas obras mais enigmáticas, o conto da Serpente Verde. Este texto apareceu pela primeira vez integrando o conjunto de narrativas que recebeu o título de “Conversas de Exilados Alemães”, publicado pela primeira vez em 1795. Os personagens, uma Baronesa e sua família, obrigados a fugir da Alemanha devido a invasão das tropas francesas, contam histórias uns aos outros para matar o tempo. Estas narrativas tratam de temas relacionados ao amor e ao sobrenatural e este conto é a última das histórias, contada por um sacerdote. Segundo suas palavras, ela lembrará “tudo e coisa nenhuma”. 

Um conto enigmático

“O Conto da Serpente Verde” comporta vários níveis de leitura: além de alegoria política, pode ser lido como uma fantasia, um conto maravilhoso para deliciar os aprecia­dores da boa literatura ou, também, como obra de profunda significação hermética e alquímica. Este lado místico de Goethe tem atraído a atenção de muitos estudiosos ao longo do tempo e, certamente, não deixará de fascinar também o leitor dos dias de hoje. 

No original este texto se chama simplesmente “Das Märchen” (O Conto) e Goethe construiu a história servindo-se da simbologia alquí­mica, assunto que começou a pesquisar desde 1769 quando foi curado de uma longa doença por um sábio adepto de Paracelso. Embora tenha se recusado a dar qualquer pista para a compreensão desta obra, é evidente que ela trata do lento processo de transformação espiritual por meio da Obra al­quí­mica. Todo ritual de iniciação é uma representação simbólica da morte e do renascimento, da passagem das trevas para a luz e do sa­crificio individual pelo bem de todos, conduzindo à perfeição. Em linhas gerais é disso que trata o conto da Serpente.

Para Rudolf Steiner, neste conto Goethe quis representar as múltiplas tendências da alma humana, simbolizadas nos personagens, cujas aventuras e ações recíprocas encarnam toda a vida psíquica do homem e todas as suas aspirações. Steiner destaca a importância do leitor manter seus olhares fixos no mundo da alma humana, mundo que preocupava Goethe na época em que escreveu o seu conto e cujos diversos aspectos lhe inspiraram — no lugar de idé­ias filosóficas — personagens espirituais muito vívidos.  Assim explica Steiner, em La Revelation Occulte de Goethe: “Tudo o que vive nestes personagens se encontra no interior da alma. (...) Através das cenas sucessivas deste conto, o olhar espiritual de Goethe abarca as diversas etapas que a alma humana percorre desde o momento em que ela se sente ain­da estrangeira no mundo supras­sensível até o apogeu de sua consciência. Então tudo o que ela realiza no mundo dos sentidos se penetra do mundo espiritual a tal ponto que os dois mundos se fundem em um só. Tal era a metamorfose que Goe­the pre­tendia descrever sob o véu superficial de seus personagens imaginários.”

 Este conto de fadas teria sido escrito por Goethe como uma resposta a um trabalho de Schiller intitulado Cartas sobre a educação estética do homem. Uma das ideias principais expostas nestas cartas concentra-se na questão da liberdade humana. Schiller acreditava que uma vida social harmoniosa só poderia ser fundamentada sobre personalidades humanas livres. Ele concebia um ser humano ideal dentro de cada indivíduo e o desafio era harmonizar as experiên­cias externas da vida com este ‘homem ideal’. Só então o ser humano levaria uma existência verdadeiramente digna. Schiller tentou construir uma ponte interior entre a personalidade da realidade imediata e o ser humano ideal. Estas cartas foram escritas durante o período e o contexto da revolução francesa, movimento conduzido pelo desejo de que as transformações sociais externas permitissem aos homens agirem livremente. Schiller e Goethe concordavam que a liberdade não pode ser “imposta” do exterior mas deve resultar de cada indivíduo. 
Mesmo apreciando estas cartas de Schiller, Goethe achou que a sua abordagem das forças interiores da alma tinha sido enunciada de maneira muito simples, e, na verdade, trabalhar com idéias abstratas não era o terreno de Goethe. Assim, resolveu escrever um conto de fadas que mostrasse, através das imagens simbólicas, a maneira como uma alma poderia tornar-se inteiramente livre, con­s­truin­do desta forma uma nova e liberta comunidade humana. 

Apesar de ser uma obra escrita em 1795, e fazendo alusões a acontecimentos políticos da época, este conto permanece atual e vai muito além de even­tuais conotações políticas. Sem muito esforço pode se ver nele até alguma relação com o momento atual, neste início de mi­lênio, quando se fala insistentemente em “nova era”. Com efeito, esta obra anuncia um no­vo tempo de harmonia social, sem a necessidade da ruptura violenta en­tre passado e presente, com a acomodação entre a sabedoria antiga e o conhecimento racional da moderni­dade. A utopia sonhada por Goethe passa pelo entendimento entre as classes, a aristocracia e a burguesia, mas ainda sob a égide de um monarca esclarecido. Aliás, Goethe nunca viu com bons olhos a fúria destru­tiva da Revolução Francesa; e ao leitor atento não passará despercebida uma men­sagem conservadora ao final do conto.

As conotações históricas e políticas são evidentes nesta obra, mas para compreendê-la em todas as suas nuances nada melhor do que o estudo abalizado de um especialista em simbologia hermética: Oswald Wirth, um nome já conhecido pelos estudiosos de esoterismo e de literatura  maçônica. 

Sobre esta obra genial de Goethe muito teríamos o que falar, seguindo o rastro luminoso da Serpente e viajando através de seu rico simbolismo, mas deixemos que ela fale por si mesma e que o próprio leitor desvende o segredo que ela encerra.

Notas:

1. Marcel Brion, Génie et Destinée — Goethe, Éd. Albin Michel, 1949, pág. 28
2.  Idem, pág. 18

O Esoterismo da Serpente Verde 
de Goethe 

Brochura, 156 paginas; formato 14 x 21 cm., ilustrada. Tradução do francês e prefácio por Bira Câmara. Interpretação do simbolismo esotérico e maçônico do conto de Goethe por Oswald Wirth. O volume traz também o estudo de Rudolf Steiner, "O Espírito de Goethe". 

PEDIDOS: jornalivros@gmail.com



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