Um padre pouco convencional, um alquimista maluco, silfos e salamandras, episódios
tragicômicos, são os ingredientes deste curioso romance de Anatole France: A Rotisseria da Rainha Pedauque
(Texto de Bira Câmara)
Não deixa de ser surpreendente que Anatole France, o cético e ferrenho inimigo da superstição tenha escrito um romance que tem como personagens centrais um sábio e simpático abade, e um alquimista que se gaba do convívio com elfos e salamandras. Mas, na verdade, tudo é pretexto para abordar com humor e ironia – suas marcas registradas – temas como a teologia cristã, o gnosticismo, o hermetismo, a alquimia, a natureza humana. O ambiente é o do século XVIII, um mundo hoje distante, desconhecido, quando era difícil separar as crenças sérias da superstição, e surgiam os movimentos maçônicos, rosacruzes, martinistas, e o ocultismo gerava sua procissão de aberrações intelectuais, pseudo-espirituais e sectárias.
Romance cheio de lições de vida e de referências literárias e bibliófilas, escrito com delicadeza e leveza, descreve a “iniciação” do jovem Jacques Tournebroche por um “mestre” alquimista, caçador de salamandras e fabricante de ouro.
A obra é um brilhante pastiche, ao gosto dos romances do século XVIII, picaresco e repleto de episódios tragicômicos ou burlescos. Contudo, respeitando as leis do gênero, vai mais adiante e nos coloca questões sobre o sentido da vida – as discussões filosóficas impõem seu valor de inquietude e de apologia do desejo.
Jacques Castenet, da Academia Francesa, põe em dúvida se esta obra é verdadeiramente um romance, descrevendo-a como “mais uma série de cenas de cores intensas e de engenhosas digressões à volta de alguns temas”. (1) Mesmo minimizando a importância do texto no conjunto da obra de France, reconhece no abade Jerôme Coignard uma personagem “inolvidável”: doutor em Teologia, licenciado em Artes, sábio, eloquente, um pouco devasso, boêmio, apaixonado pelo baralho, e um pouco bêbado. Espécie de alter-ego de France, Coignard encanta pela erudição, humor, ironia e frescor de espírito e de alma. A este brilhante sofista, France contrapõe o amável cabalista d’Astarac, igualmente tagarela e orgulhoso de seu misticismo grosseiro, sempre alardeando suas relações com salamandras, silfos, duendes e gnomos. As discussões travadas entre ambos, de certa forma, resgatam o embate travado nos primeiros séculos de nossa era entre o cristianismo nascente e o paganismo moribundo com seus devaneios gnósticos. Mas o ponto de tensão na trama aparece na figura de Mosaide, um judeu cabalista encarregado por d’Astarac de decifrar antigos textos alquímicos.
No prefácio da tradução inglesa de 1921, James Branch Cabell faz um paralelo entre o enredo e as personagens deste romance, com Memórias de um Médico, de Dumas pai. Ele vê em d’Astarac, Tournebroche e Mosaide algo perceptível em comum com Balsamo, Gilbert e Althotas. Mas evidentemente não há termo de comparação entre os dois escritores, pois os personagens de France, entre atribuições e combates, brincam amorosamente... com ideias. O enredo e a ação são secundários; essa “brincadeira”, essa série de divertimentos mentais caracteriza quase todas as obras de France. Assim, por exemplo, sobre o abade Coignard, o importante não é sua carreira atribulada, por mais agitada que seja em fugas, roubos intelectuais e violentos, brigas, bebedeiras, mas suas meditações religiosas, de onde emerge um coração alegre, terno e bondoso.
Anatole France é um um dos maiores escritores da literatura francesa. Poeta, crítico e historiador de arte, foi como romancista que ele deu a medida completa de seu talento. Publicou apenas quinze romances e entre eles La Rotisserie de la Reine Pédauque, publicado em 1893, onde ele se diverte contando uma história incrível, com uma sucessão de cenas engraçadas e personagens coloridos e malucos. Mas essa história também é um pretexto para passar as próprias ideias do autor nos diálogos, e France é irônico e zomba de tudo: em primeiro lugar das instituições e dos costumes, mas também de clérigos gananciosos e glutões, dos alquimistas, dos estudiosos das ciências ocultas, de eruditos tagarelas e filósofos cabalistas. Tudo isso narrado num estilo elegante, numa prosa que se destaca pela precisão, espontaneidade e invenção, com um humor que é a própria personificação do “belo espírito francês” em sua forma mais sutil.
Título e gênese da obra
O título da obra, que para o leitor desavisado poderia passar por um livro de culinária, faz referência ao nome da loja de assados dos pais de Tournebroche, personagem que narra a história. A tradução literal do título para o português seria A Churrascaria da Rainha Pé de Pato, o que, convenhamos, não cairia bem...
A rainha Pédauque, que tinha o pé com membranas como os patos, é uma alta figura da Borgonha, onde é considerada como protetora dos viticultores e sua efígie pode ser vista em Dijon, no portal da Abadia de Saint Bénigne, portal bem conhecido por France, pois a visitou em diferentes ocasiões. Segundo ocultistas, por trás da figura da rainha Pédauque se escondia, na verdade, a lendária rainha de Sabá, a esposa do rei Salomão! Mas certo mesmo é que essa curiosa personagem era a rainha Bertha, do pé grande, mãe de Carlos Magno.
A Rôtisserie de la reine Pédauque foi, também, durante bastante tempo, um célebre restaurante em Paris, situado na Rua da Pépinière, perto da estação Saint-Lazare. Em cima da chaminé encontrava-se dependurado o retrato de Anatole France feito por Auguste Leroux.
O romance foi diretamente inspirado pelo livro de Nicolas de Montfaucon de Villars, O Conde de Gabalis ou As Ciências Secretas (1670), onde o autor revela agradavelmente os mistérios da Cabala e da Sociedade Rosacruz. Já o personagem Tournebroche pode ser identificado com Eugène Canseliet, um alquimista moderno e que conheceu o romancista.
O vínculo entre Villars e France foi dissecado num pequeno livro acadêmico, muito bem argumentado e, infelizmente, pouco conhecido, de autoria de René-Louis Doyon (1885-1966), Vie, aventures, mort tragique de l’abbé Montfaucon de Villars, sa légende, sa montée aux théâtres, sa descente aux enfers et sa réincarnation en Jérôme Coignard. Dedicado ao padre Montfaucon, e publicado em Agen em 1942, este panfleto faz uma comparação eloquente dos respectivos textos de France e de Villars.
Em outra de suas obras (2), Doyon menciona um fato que pode surpreender a respeito de Anatole France: ocasionalmente ele assistiu palestras do ocultista Papus, e retirou dessa frequência a revelação do conde de Gabalis, curiosa obra do padre Montfaucon de Villars, posteriormente transformado no tragicômico Jérôme Coignard.
Mas, segundo Canseliet, a ideia deste romance foi inspirada a Anatole pelo seu amigo o célebre Fulcanelli. (3) Parece que Fulcanelli e Eugène Canseliet se encontraram com o escritor várias vezes, principalmente em 1920, na principesca casa de France em Villa Saïd, numa delas com a presença de Julien Champagne (pintor e ilustrador das obras de Fulcanelli).
NOTAS:
(1) Jacques Chastenet, Vida e Obra de Anatole France, in O Crime de Sylvestre Bonnard, pg. 42
(2) La Connaissance, 1946, ensaio sobre Péladan
(3) Revue La Tourbe des philosophes, N ° 14,1981)
A Rotisseria da Rainha Pedauque
Anatole France
Brochura, ilustrada, 231 páginas, formato 13,5 X 20 cm.
Pedidos:
jornalivros@gmail.com
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