sexta-feira, 9 de abril de 2021

Apocalipse: um cavalo de Tróia no Cristianismo?

Um livro publicado em 1832 comprova que o Apocalipse nada mais é do que um pastiche de profecias tiradas do Velho Testamento, junto com elementos da simbologia astrológica dos caldeus. Apesar da resistência de muitos doutores que suspeitaram da identidade do seu verdadeiro autor e de sua matriz pagã, ele  acabou se tornando texto canônico da Igreja, inspirando os mais desvairados delírios catastrofistas ao longo do tempo.

Texto de Bira Câmara

Pode-se afirmar com razoável grau de certeza que o Apocalipse é um corpo estranho ao Novo Testamento. En­tre os primeiros cristãos, muitos doutores da Igreja ignoraram o texto, alguns o criticaram e até o refutaram integralmente, considerando-o destituído de sentido e de razão. Houve quem atribuísse a sua autoria ao gnóstico Cerinto (c. 100), que teria usado o nome de São João para dar mais credibilidade ao texto. Este Ce­rinto apareceu logo após a morte dos apóstolos. Um autor latino que viveu por volta do ano 200, o padre Caïus, acreditava que Cerinto era o verdadeiro autor do Apocalipse, por defender a ideia de que após a sua ressurreição haveria o reino de Cristo sobre a terra, e que os homens gozariam os prazeres do corpo em Jerusalém, que passa­riam 1000 anos em celebração, etc.

No fim do segundo século, o Apocalipse foi reconhecido pela Igreja do Ocidente, mas na mesma época foi excluído dos cânones da Igreja do Oriente. Ainda no século IV não havia concordância quanto a autoria dessa revelação. Um pouco depois ele foi admitido pela Igreja.

Quase todos os intérpretes antigos e modernos que tentaram interpretar o Apocalipse de João fracassaram, pois para essa tarefa é preciso conhecer a fundo não só os livros do Antigo Testamento, os acontecimentos históricos da época em que foi escrito, mas também a teologia astrológica dos Orientais e os mitos das religiões dos pagãos. 

Se os eruditos jamais conseguiram decifrar os enigmas contidos nesse texto, muitos concordam em vários pontos: primeiramente, o seu autor não foi o apóstolo João, o evan­gelista, mas alguém que viveu no final do primeiro século ou início do segundo; o texto refere-se a eventos que deveriam acontecer num futuro próximo; a Besta de sete cabeças que aparece no texto representa o Império Romano e suas cabeças se relacionam aos sete primeiros imperadores romanos; a figura do anticristo é claramente calcada em Nero; o texto está repleto de uma sim­bologia astrológica caldaica; e por último, seu autor imitou ou se inspirou nos profetas do Velho Testamento. Portanto, estão errados aqueles que supõem que o Espírito Divino ditou ou inspirou as visões contidas no Apocalipse, pois se Deus quisesse esclarecer os homens e anunciar o futuro, não teria falado numa linguagem não apenas obscura, mas incompreensível. E, na verdade, o Apocalipse não en­cer­ra nenhuma profecia que tenha se cumprido ou que se cumprirá, e seria uma tarefa inútil buscá-las.

Por volta do século IV, quando a Igreja e o Império Romano se conciliaram, e o futuro do cristianismo já não se separava do império, os teólogos gregos e latinos não podiam mais admitir a validade de um texto baseado no ódio a Roma e que anunciava o fim do seu reino. O Apocalipse foi declarado apócrifo pela Igreja do Oriente, cujos membros educados na cultura helênica repudia­vam os escritos milenaristas judaico-cristãos. Mas o texto enraizara-se de tal modo no imaginário dos fieis, que foi impos­sível expurgá-lo do Novo Testamento. Até o século IX ainda havia a crença no retorno de Nero, desempenhando o papel da Besta à fren­te dos dez reis para destruir Roma...

Jean André de Luc (1727-1817, autor de Luzes sobre o Apocalipse, obra altamente esclarecedora sobre esse texto, afirma que «as dificuldades insuperáveis que se encontra, quando se pretende fazer a interpretação das visões do Apocalipse, em grande parte, vêm de que tem sido procurado ali o que não existe, isto é profecias sobre os seres humanos ou eventos terrestres, que deveriam acontecer nos séculos seguintes». Essas profecias, ou melhor, essas visões foram dirigidas aos homens que viviam naqueles tempos, e só visavam a eles; elas aconteceriam em breve; o tempo estava próximo, e ainda assim elas nunca se realizaram: é em vão que os iniciados esperam o apa­recimento da Nova Jerusalém; em vão eles esperam os juízos de Deus e os efeitos da sua ira. O autor, para descrevê-las, emprestou do An­tigo Testamento os eventos que se passaram muitos séculos antes dele. O Apocalipse é um livro puramente de imaginação e foi inventado a partir de imitações. Todas as suas visões foram criadas pela imaginação do autor, ou imitadas do Antigo Testamento e, portanto, copiadas. 

No Apocalipse tudo se refere a um mundo problemático; as pragas, frequentemente muito exageradas, anunciadas para a terra, são aquelas que sempre afligem a humanidade todos os anos, em algum canto da terra; de maneira que determinar em que ano, em que século deverão acontecer, é uma busca infrutífera. O Espírito Santo, portanto, é muito estranho à composição do Apocalipse...

Origem pagã do Apocalipse

As fontes pagãs do texto apoca­líptico já tinham sido destacadas por Charles Dupuis (1742-1809), que no sexto volume de seu livro Origem de todos os cultos, defende a tese de que o Apocalipse é uma obra frígia, cujo conteúdo relata a doutrina apocalíptica dos iniciados nos mistérios da luz e do sol equinocial da primavera, sob o signo do Carneiro ou de Áries, o primeiro dos doze signos. A religião frígia, diz ele, comemorava anualmente o triunfo perió­dico da Luz sobre o princípio das Trevas, do dia sobre a noite. Todos os anos, quando o sol, que abriga a luz divina, no equinócio vernal chegava ao Carneiro — o signo de sua exaltação —, esta efeméride lembrava aos iniciados o grande triunfo que deveria acontecer no final dos tempos, quando o princípio do mal e a Terra que ele habitava seriam destruídos, cedendo lugar a Ormuzd, que deveria reinar exclusivamente sobre as ruínas do antigo mundo. O Apo­calipse é, pois, segundo Dupuis, um sermão da festa da Páscoa do cordeiro. Sabe-se, pelo Concílio de Toledo na Es­panha, que havia o costume de se ler o Apocalipse em público durante todo o período em que o sol atravessava o signo de Áries, ou seja, da Páscoa até o Pen­­tecostes.

Infelizmente, os astrólogos caldeus e persas não deixaram obras sobre o seu sistema teológico, que forneceria, sem dúvida, a chave para as visões e a origem da forma enigmática de des­crever e prever eventos usada pelo autor do Apocalipse. Mas se a origem das representações simbólicas dos profetas pode ser reconhecida, por outro lado inter­pretá-las é tarefa bastante difícil, pois certas relações astronômicas se acham dissimuladas no texto. 

As correspondências entre o texto dos profetas do Velho Testamento e o do autor do Apocalipse são apontadas detalhada­mente por Jean Andrè de Luc e são inquestionáveis.

Luzes sobre o Apocalipse foi praticamente ignorado pelos teólogos e estudiosos da literatura apocalíptica, o que é no mínimo estranho. É provável que a razão disso seja por ter se baseado em grande parte na obra de Dupuis, que ficou marcada como antirreligiosa.(*) Até mais ou menos 1825, o seu livro Origem de Todos os Cultos foi muito lido pela burguesia exatamente por esse motivo; mas em meados do século dezenove caiu no esquecimento pela mesma razão... O espírito do século XVIII, anti­católico, anticristão, estava presente nele, e quando ventos conservadores passaram a soprar na França tornou-se, então, fora de moda.

Dupuis acreditava em um Deus impessoal que permeava tudo e, portanto, pode ser classificado como panteísta. O mesmo não se aplica ao autor de Luzes sobre o Apocalipse, que não põe em dúvida a autenticidade dos profetas do Velho Testamento. Ele escreveu sua obra com a melhor das intenções e acreditava que prestava um serviço ao mundo cristão e à crítica sadia ao publicá-lo. E com justa razão afirma, antecipando-se às críticas, que «aqueles que acreditam que o Espírito divino ditou ou inspirou as visões contidas no Apocalipse não suspeitam que blasfemam contra a Divindade.» Mesmo assim, com certeza a sua publicação no Brasil será execrada pelos crentes fanáticos de todas as denominações cristãs, e odiado por esotéricos e entusiastas de profecias catastróficas.

Fonte de delírios milenaristas

Ao longo do tempo, o Apocalipse inspirou inúmeros profetas, como a abadessa alemã Hroswitha (950), o monge Raoul Glaber (975), Santa Hildegarde de Bingen (séc. XI-XII), contemporânea do místico Joaquim da Fiore, que retomou o Apocalipse para reafirmar suas predições e aplicá-la a um futuro próximo. E a coisa não parou por aí, praticamente todos os místicos da tradição cristã continuaram a ser influen­ciados pelo texto de João de Patmos.  Até mesmo no Brasil, em pleno século vinte, tivemos um «profeta» — o célebre coronel Rolim de Moura — que adaptou as ideias contidas no Apocalipse para fazer previsões para o Brasil e o mundo. Baseado nesse texto, na numerologia, na piramido­logia e em Nostradamus, chegou a criar uma «ciência» a que deu o nome de teocósmica, através da qual acreditava que se poderia prever o destino das nações e do próprio planeta. É desnecessário dizer que nenhuma de suas profecias se realizou...

O Apocalipse, com seu simbolismo obscuro e incompreensível aos comuns dos mortais, prestou-se com o passar dos séculos às mais desvairadas interpretações, e seus adeptos fanáticos nunca deixaram de ver nos acontecimentos e personagens históricos de seu tempo os sinais descritos nos textos proféticos.

O livro tem intrigado incontáveis pesquisadores e exerceu verda­deiro fascínio entre muitos deles. Mesmo os religiosos dos diversos ramos do cristianismo divergem quanto à sua inter­pretação. Entre os evangélicos, há os preteristas que defendem que a maior parte do Apocalipse tem sua principal referência no passado e descreve simbolicamente a luta entre o cristianismo e o Império Romano; os futuristas declaram que a maior parte do livro se cumprirá no futuro; os historicistas — entre os quais se destacam Wicliff, Lutero e Isaac Newton — não têm dúvida de que o livro já se cumpriu parcialmente no passado, está se cum­prindo no presente, e se cumprirá plenamente no futuro; já os idealistas, ou espiritualistas, rejeitam todas essas três corren­tes, e recorrem a um método de interpretação mais espiritual, filosó­fico ou poético, sustentando que a linguagem do vidente é altamente simbólica, entre seus adeptos destacam-se Clemente de Alexandria e Orígene. Há ainda uma quinta corrente, dos que defendem a tese mistagoga, a mais permanente na exegese, que vê no livro uma descrição da própria Igreja, em sua liturgia, como a Jerusalém celeste. Como tal, o que é revelado também é consistente com aspectos da Igreja terrestre que é apenas seu reflexo em perpétuo devir (sua liturgia, sacramentos, seu tempo — incluindo seu término).

Os católicos em geral tendem a considerar que o Apocalipse não deve ser interpretado ao pé da letra. Os mais eruditos e penetrantes espíritos da Igreja, desde sua própria fundação, o estudaram sem chegar a uma interpretação unânime quanto a todos os pontos. O livro permanece misterioso em grande parte, e por isso a Igreja adota muita cautela diante dele, sem impor oficialmente nenhuma das numerosas explicações dadas até mesmo por Doutores da Igreja.

As opiniões também divergem quanto à validade profética e à própria qualidade literária do texto. Renan, por exemplo, vê no estilo de seu autor a «perfeita an­tí­tese da obra-prima grega», mas reconhece que ele foi o último grande profeta e que o Apocalipse «oferece o fenômeno quase único duma imitação de gênio, uma rapsódia original». Já para D. H. Lawrence, é um «livro pagão muito anterior a Cristo, condimentado pela simbologia cósmica, corroído depois por escribas judeus» e moldado pelas conveniên­cias da nova religião. Segundo ele, os profetas tardios que o usaram tentaram ocultar os vestígios da sua matriz pagã e, em sua opinião, esse talvez seja o mais detestável livro da Bíblia, uma «orgia de mistificação», repleta de artificialismo pomposo e de imagens que são «totalmente apoéticas e arbitrárias».

O Apocalipse tornou-se fonte dos mais desca­belados delírios mile­naristas que perduram até hoje. Sobre ele diz Gérard de Séde, em seu livro Estranho Mundo dos Profetas

«Há vinte séculos que o Apo­calipse foi saqueado, proposital ou inconscientemente, que foi plagiado, deformado, adaptado aos gostos da época e a serviço das mais diferentes causas, pelos pregadores e os blasfema­dores, os que vaticinavam a boa ou a má sorte».

E conclui, dizendo aquilo que todas as pessoas de bom senso e razoavelmente bem informadas já sabem: 

«...o Apocalipse é o modelo de profecia comprovadamente falsa: o autor anuncia­va o próximo fim do mundo, e já se passaram dois milênios sem que isso acontecesse».

Não há razão para acreditar que as visões desse livro se apli­quem a quaisquer eventos da atualidade. Visionários do passado e do presente têm se debruçado sobre ele na vã esperança de ante­cipar o futuro e, não raro, com seu fanatismo cego, já provoca­ram lamentáveis tragédias. 

Através dos tempos, o texto do Apocalipse inspirou líderes religio­sos fanáticos a promover revoltas e lutas sangrentas. Seria exaustivo citar todos estes movimentos e quem se interessar pelo assunto pode encontrar fartas referências nos livros de História. Nos séculos XVI e XVII, o profetismo apocalíptico esteve associado às revoltas de camponeses contra a Igreja e os príncipes na Alemanha, nos Países Baixos e na França. Seus líderes geralmente exigiam o «cumprimento das profecias», a libertação da Igreja, o castigo dos mal­vados e o triunfo da justiça. Não é à toa, pois, que os padres relutaram em aceitar a temática do Apo­calipse. Sempre que estas ideias ganham força entre o povo a própria Igreja passa a correr riscos...  Todos os falsos pro­­fetas tentaram precipitar o cumprimento das profecias de imediata consumação dos tempos e, frequentemente, só conseguiram provocar derramamento de sangue, tornando-se também vítimas destas mes­mas ideias.



Luzes sobre o Apocalipse

Jean André de Luc 

Brochura, 172 páginas, formato 14 X 21 cm.

Tradução de Bira Câmara. Primeira edição em língua portuguesa.


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