sexta-feira, 9 de abril de 2021

Fagundes Varella, contista

Varella, além de poeta, dedicou-se também à crônica e era um prosador talentos
o. 


Texto de Bira Câmara 

O seu nome até hoje é cercado de lendas, anedotas, e a fama de boê­mio e alcoólatra chega quase a obscurecer a figura do poeta genial.



Há muitos pontos obscuros na vida de Va­rella, pois são escassos os documentos que poderiam lançar luzes sobre a sua personalidade arredia, solitária e enigmática. Sentia fascínio pela vida bucó­lica do campo e tinha o hábito de desaparecer frequentemente, fazendo longas caminhadas pelas estradas do interior. Era um desajustado, um verdadeiro exi­­la­do em sua própria terra. 

Teve uma vida trágica, atribulada; casou-se aos vinte e um anos com uma artista de circo, e desta união desastrada nasceu um filho que veio a morrer aos três meses. Esta tra­gédia inspirou-lhe o célebre poema “Cânti­co do Calvário”, considerado expressão máxima de seus versos e presença obrigatória em todas as antologias das letras na­cio­nais. Casou-se de novo, com uma prima, foi pai de duas me­ninas e um menino, também falecido prematuramente. Indiferente à glória que alcançou com sua obra, torturado pela an­gús­tia, entregou-se à bebida até o fim de seus dias. Vivendo sempre à custa do pai, morreu com 34 anos.

Pela vida desregrada que le­vou, alheio às convenções sociais, entre os poetas românticos foi quem mais encarnou o espírito byroniano da época. 

Dedicou-se também à crônica à prosa, embora mui­tos críticos sejam da opinião de que a sua prosa é claramente in­ferior à sua poesia. No entanto, isso nos parece um julgamento precipitado e na defesa do poeta temos que lhe desculpar a brevidade da existência e reconhecer que não houve tempo para que o prosador que havia nele amadurecesse. Se tivesse vivido mais teria, com certeza, cons­­truído uma obra consistente e, além do contista, quem sabe não teríamos também um grande ro­mancista? Talento para isso não lhe faltava.

Apesar da existência caótica, Varella deixou considerável acervo de produções literárias que não foram reunidas em livro, nem constam em suas Obras Completas. Infelizmente, muita coisa se perdeu, e da sua prosa boa parte do que chegou até nós foi publicado no Correio Pau­listano, na forma de crônicas e folhetins.

O Varella contista seguiu as pegadas de Álvares de Azevedo — Noite na Taverna e Macário —, pagando tributo ao gênero macabro que teve em Sha­­kes­peare, Byron, Hoff­mann e Pöe seus grandes expoentes.

As Ruínas da Glória foi o primeiro folhetim publicado por ele no Correio Paulistano, em 1861. Além da influên­cia de Álvares de Azevedo, também é visível a de Hoffmann e Vitor Hugo. 

A influência das concepções românticas, sobretudo de Byron, refletiu-se na vida e obra do poeta, tornando-o tam­bém vítima delas. Se Álvares de Azevedo foi o maior re­presentante do byronismo no Brasil, com certeza Varella é quem o encarnou mais vis­ceralmente.

São Paulo em 1862, Largo do Piques (foto de Augusto Militão de Azevedo)

Durante os anos que passou em São Paulo, enfrentando as maiores adversidades, Varella viveu como um out­si­der, andarilho, vagabundo e ébrio, sobretudo após a morte prematura de seu filho pri­mo­gênito. Mesmo assim conseguiu escrever três livros que re­ceberam con­sagração da crítica, Noturnas (1861), Vozes d’América (1864) e Cantos e Fantasias (1865).

O poeta viveu alguns anos em São Paulo nos tempos de estudante, mas nasceu na então Província do Rio de Janeiro, em 17 de agosto de 1841, onde passou a infância. Aos 18 anos veio para São Paulo para fazer o curso de Direito e em 1865 teve uma curta estadia em Recife; retornou à capital paulista, mas desta vez não per­maneceu por muito tempo, retornando ao Rio para passar o resto de sua curta existência.

Vicente de Azevedo ressaltou o quanto a obra do poeta reflete a sua vida e que “poucos exemplos haverá, na literatura universal, em que este fato ocorra com tanta frequên­cia e nitidez”.

A biografia de Varella, com suas tragé­dias pessoais, é intercalada por episódios ane­dóticos e singulares, como o naufrágio na costa de Recife ao qual sobreviveu. Foi amigo de Castro Alves e poderia ter circulado nas altas rodas intelectuais da Corte, no Rio de Janeiro, mas preferiu a vida nômade, errante, frequentando botequins à beira de estradas, indiferente à glória e vivendo à margem da sociedade.

O próprio poeta autode­finiu-se, num de seus Folhetins, como “planta estrangeira nos campos de Pira­tinin­ga, judeu errante na sociedade paulistana”, solitário e iso­lado. 

As influências literárias de Varella são re­ve­ladas ao longo de seus textos: Hoff­mann, Byron, Ossian, Goe­the, Shelley, Spi­no­za, Ann Radcliffe. Chega a ser paradoxal um gosto literário tão sofisticado e a existência qua­se indigente levada pelo poeta. Nos seus últimos três anos de vida o al­coo­lismo levou-o à sarjeta. Precocemente envelhecido, errou pelas ruas de Niterói e da Corte, servindo de objeto de zom­barias da molecada. Re­citava ou escrevia versos para os taberneiros em troca de um trago de cachaça, e muitas vezes acabava preso e ia curar a bebedeira na cela de algum distrito policial. Mesmo assim ainda conseguia trabalhar nas suas produções poéticas.

Sua última aparição diante de uma pla­teia edu­cada, a Sociedade Brasileira de Ensaios Literários, em janeiro de 1875, foi um fiasco. Mal vestido, com aspecto físico deplorável, usando um casaco velho e ensebado, murmurou frases desconexas e chegou a ser vaiado pelo público insensível. Veio a falecer alguns dias depois, em 18 de fevereiro, na cidade de Niterói, vítima de um ataque de apoplexia. An­ticlerical e descrente na juventude, de acordo com o figurino byro­niano, acabou voltando-se para Deus e a religião no final de sua vida.

Ruínas da Glória

Contos fantásticos e outros escritos de Fagundes Varella

Brochura, 112 páginas, formato 13 X 20 cm. Ilustrado. Organização, prefácio e projeto gráfico de Bira Câmara. Textos: “A guarida de pedra”, “As bruxas”, “Recordações de viagem”, “Palavras de um louco”, “Poesia e os poetas”, “Acúsmatas” e “Manuscrito”.

Pedidos:
jornalivros@gmail.com

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