Varella, além de poeta, dedicou-se também à crônica e era um prosador talentoso.
Texto de Bira Câmara
O seu nome até hoje é cercado de lendas, anedotas, e a fama de boêmio e alcoólatra chega quase a obscurecer a figura do poeta genial.
Há muitos pontos obscuros na vida de Varella, pois são escassos os documentos que poderiam lançar luzes sobre a sua personalidade arredia, solitária e enigmática. Sentia fascínio pela vida bucólica do campo e tinha o hábito de desaparecer frequentemente, fazendo longas caminhadas pelas estradas do interior. Era um desajustado, um verdadeiro exilado em sua própria terra.
Teve uma vida trágica, atribulada; casou-se aos vinte e um anos com uma artista de circo, e desta união desastrada nasceu um filho que veio a morrer aos três meses. Esta tragédia inspirou-lhe o célebre poema “Cântico do Calvário”, considerado expressão máxima de seus versos e presença obrigatória em todas as antologias das letras nacionais. Casou-se de novo, com uma prima, foi pai de duas meninas e um menino, também falecido prematuramente. Indiferente à glória que alcançou com sua obra, torturado pela angústia, entregou-se à bebida até o fim de seus dias. Vivendo sempre à custa do pai, morreu com 34 anos.
Pela vida desregrada que levou, alheio às convenções sociais, entre os poetas românticos foi quem mais encarnou o espírito byroniano da época.
Dedicou-se também à crônica à prosa, embora muitos críticos sejam da opinião de que a sua prosa é claramente inferior à sua poesia. No entanto, isso nos parece um julgamento precipitado e na defesa do poeta temos que lhe desculpar a brevidade da existência e reconhecer que não houve tempo para que o prosador que havia nele amadurecesse. Se tivesse vivido mais teria, com certeza, construído uma obra consistente e, além do contista, quem sabe não teríamos também um grande romancista? Talento para isso não lhe faltava.
Apesar da existência caótica, Varella deixou considerável acervo de produções literárias que não foram reunidas em livro, nem constam em suas Obras Completas. Infelizmente, muita coisa se perdeu, e da sua prosa boa parte do que chegou até nós foi publicado no Correio Paulistano, na forma de crônicas e folhetins.
O Varella contista seguiu as pegadas de Álvares de Azevedo — Noite na Taverna e Macário —, pagando tributo ao gênero macabro que teve em Shakespeare, Byron, Hoffmann e Pöe seus grandes expoentes.
As Ruínas da Glória foi o primeiro folhetim publicado por ele no Correio Paulistano, em 1861. Além da influência de Álvares de Azevedo, também é visível a de Hoffmann e Vitor Hugo.
A influência das concepções românticas, sobretudo de Byron, refletiu-se na vida e obra do poeta, tornando-o também vítima delas. Se Álvares de Azevedo foi o maior representante do byronismo no Brasil, com certeza Varella é quem o encarnou mais visceralmente.
São Paulo em 1862, Largo do Piques (foto de Augusto Militão de Azevedo) |
Durante os anos que passou em São Paulo, enfrentando as maiores adversidades, Varella viveu como um outsider, andarilho, vagabundo e ébrio, sobretudo após a morte prematura de seu filho primogênito. Mesmo assim conseguiu escrever três livros que receberam consagração da crítica, Noturnas (1861), Vozes d’América (1864) e Cantos e Fantasias (1865).
O poeta viveu alguns anos em São Paulo nos tempos de estudante, mas nasceu na então Província do Rio de Janeiro, em 17 de agosto de 1841, onde passou a infância. Aos 18 anos veio para São Paulo para fazer o curso de Direito e em 1865 teve uma curta estadia em Recife; retornou à capital paulista, mas desta vez não permaneceu por muito tempo, retornando ao Rio para passar o resto de sua curta existência.
Vicente de Azevedo ressaltou o quanto a obra do poeta reflete a sua vida e que “poucos exemplos haverá, na literatura universal, em que este fato ocorra com tanta frequência e nitidez”.
A biografia de Varella, com suas tragédias pessoais, é intercalada por episódios anedóticos e singulares, como o naufrágio na costa de Recife ao qual sobreviveu. Foi amigo de Castro Alves e poderia ter circulado nas altas rodas intelectuais da Corte, no Rio de Janeiro, mas preferiu a vida nômade, errante, frequentando botequins à beira de estradas, indiferente à glória e vivendo à margem da sociedade.
O próprio poeta autodefiniu-se, num de seus Folhetins, como “planta estrangeira nos campos de Piratininga, judeu errante na sociedade paulistana”, solitário e isolado.
As influências literárias de Varella são reveladas ao longo de seus textos: Hoffmann, Byron, Ossian, Goethe, Shelley, Spinoza, Ann Radcliffe. Chega a ser paradoxal um gosto literário tão sofisticado e a existência quase indigente levada pelo poeta. Nos seus últimos três anos de vida o alcoolismo levou-o à sarjeta. Precocemente envelhecido, errou pelas ruas de Niterói e da Corte, servindo de objeto de zombarias da molecada. Recitava ou escrevia versos para os taberneiros em troca de um trago de cachaça, e muitas vezes acabava preso e ia curar a bebedeira na cela de algum distrito policial. Mesmo assim ainda conseguia trabalhar nas suas produções poéticas.
Sua última aparição diante de uma plateia educada, a Sociedade Brasileira de Ensaios Literários, em janeiro de 1875, foi um fiasco. Mal vestido, com aspecto físico deplorável, usando um casaco velho e ensebado, murmurou frases desconexas e chegou a ser vaiado pelo público insensível. Veio a falecer alguns dias depois, em 18 de fevereiro, na cidade de Niterói, vítima de um ataque de apoplexia. Anticlerical e descrente na juventude, de acordo com o figurino byroniano, acabou voltando-se para Deus e a religião no final de sua vida.
Ruínas da Glória
Contos fantásticos e outros escritos de Fagundes Varella
Brochura, 112 páginas, formato 13 X 20 cm. Ilustrado. Organização, prefácio e projeto gráfico de Bira Câmara. Textos: “A guarida de pedra”, “As bruxas”, “Recordações de viagem”, “Palavras de um louco”, “Poesia e os poetas”, “Acúsmatas” e “Manuscrito”.
Pedidos:
jornalivros@gmail.com
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