quarta-feira, 4 de janeiro de 2023

Luciano de Samósata, um gozador incorrigível

Crítico mordaz da sociedade greco-romana em que viveu, Luciano atacou impiedosamente os filósofos tacanhos, os pseudo-historiadores, a religião e os charlatães de todos os tipos.

(Texto de Bira Câmara)

Uma das características mais notáveis da obra de Luciano é que, embora produzida há quase dois mil anos, continua até hoje em grande parte atual. Crítico mordaz da sociedade de seu tempo e arguto observador da na­tu­reza humana, quase nada escapou da sua pe­na ferina; com a mesma ir­re­verência zombou dos poderosos e das crenças da época, sem poupar especialmente os filósofos, a quem ele considerava tolos, hipócritas e farsantes.

Para Luciano, tanto a religião quan­­­to a filosofia têm o mesmo fim: for­necer respostas enganosas a pessoas crédulas e elevar charlatães ines­crupulosos a posições de autoridade. 

Escreveu cerca de 80 obras que chegaram até nós, a maioria delas satíricas. O diálogo platônico foi a principal forma usada por ele nos seus escritos. Além de narrativas satíricas produziu até mesmo o que pode ser considerado um dos primeiros textos de ficção científica, História Verdadeira, onde descreve uma viagem fan­tástica de um navio levado por uma tromba d’água para a Lua. 

Através da sátira, Luciano denunciou as crenças absurdas, a hipocrisia dos ricos e os disparates dos filósofos, como podemos ver em Icaro­menipo e em Amigos da Mentira. Racionalista e humanista, enfatizou o absurdo como recurso para zombar de tudo.

O filósofo grego satírico Menipo (séc. III a.C.), célebre por atacar a in­sensatez comum e as pretensões dos filósofos era admirado por Luciano e foi usado por ele como personagem em alguns de seus diálogos.

Luciano não tinha muita simpatia por filósofos como Platão e Sêne­ca, cujas pretensões de investigar uma realidade invisível e enalte­cer a bravura estóica considerava uma mis­­­tura de arrogância e hipocrisia des­vinculadas das experiências reais da pessoa comum. Para ele os filósofos estóicos e seus ancestrais ideológicos, quando não são aristocratas levando vidas luxuosas, são uma variedade de palhaços desajus­tados e mendigos que se tornaram demagogos. Da mesma forma,  a sociedade greco-romana em que viveu lhe ofereceu um rico campo de alvos para sua sátira; além dos filósofos tolos ou tacanhos, também atacou charlatães de todos os tipos (vide o seu relato so­bre Alexandre de Abonótica) e pseudo-historiadores. 

A virulência com que criticou a religião pagã despertou a simpatia de muitos autores cristãos, que viram nele um aliado no combate a esta cren­ça. No entanto, uma referência pou­co elogiosa de Luciano em relação a Jesus, chamando-o de “sofista crucificado”, levou os críticos cristãos de várias gerações a justificar sua condenação eterna e proscrições papais contra suas obras em 1559 e 1590. Mas ele apenas registrou que os cristãos eram um tanto ingênuos e pouco sofisticados, fazendo a ressalva de sua generosidade e espírito fraternal. Lu­cia­no foi muito mais impiedoso com outras religiões do Mediterrâneo Antigo, atacando quase todos os aspectos da atividade teológica que ele viu ao seu redor — a tolice do panteão olím­pico, as contradições entre o que vários autores disseram sobre os deuses gregos, a insensatez de acreditar em qualquer coisa invisível e todas as formas de superstição em geral, bem como a natureza fraudulenta e vaidosa dos líderes religiosos, e muito mais. 

Quando as obras gregas antigas co­meçaram a ser traduzidas para o latim no início dos anos 1500, e depois para as línguas vernáculas euro­peias, os escritos de Luciano acabaram nas mãos de uma verdadeira plêiade de escritores europeus do Renas­ci­mento e do Iluminismo, influenciando todos eles — Erasmo, Thomas Mo­re, Rabelais, Swift, Voltaire e muitos outros. Tanto o lado imaginativo dos textos de Lucia­no, quanto o seu ceticismo obstinado foram, em última análise, fundamentais para o renasci­mento da cultura greco-romana na Europa e a ascensão do humanismo secular no início do período moderno.

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A maior parte das obras de Lucia­no são narrativas curtas, com uma média de trinta páginas. Nesta edição vemos uma pequena amostra do seu trabalho, encabeçado por O Sonho ou O Galo. Neste conto, um pobre sapateiro é despertado no meio da noite pelo seu galo, interrompendo um sonho em que herdara uma fabulosa fortuna. Furioso, resolve castigá-lo, mas a ave fala com ele com voz humana e revela que é a reencarnação de Pitágo­ras. E para provar que a riqueza não traz felicidade, leva-o a uma incursão pela casa dos ricos para mostrar-lhe como são infelizes.

Em Icaromenipo, o filósofo cínico favorito de Luciano imita Ícaro e sobe ao céu para ver como tudo funciona lá em cima. No meio do caminho ouve uma queixa da Lua contra os filósofos que a importunam e caluniam, exasperada com todas as extravagâncias que os ouve debitarem em sua conta. E pede-lhe que leve um recado para Zeus: “se ele não esmagar todos os físicos, se não fechar a boca dos dia­léticos, se não derrubar o Pórtico, se não derrubar a Academia e se não por fim às discussões dos peripatéticos” irá embora para sempre... 

Já o Elogio da Mosca é uma brincadeira de Luciano, um texto curto onde ironiza o elogio literário permea­do de citações eruditas, enal­tecendo a habilidade da mosca a tudo adaptar-se...

Em seguida temos um diálogo entre Mercúrio e Caronte — o barqueiro do Inferno —, que tira um dia de licença para subir à terra e contemplar o mundo. E isto é pretexto para Lucia­no ridicularizar a soberba, a ignorância e a vaidade humana, e rir da instabilidade das coisas da vida.

Menipo reaparece no diálogo seguinte, Os Contempladores. Depois de uma incursão pelo Inferno, para onde desceu com a ajuda de um mago caldeu a fim de consultar Tirésias, Menipo encontra um amigo e relata a ele o que viu e ouviu no reino de Plu­tão. Lá ele esbarra em vários mortos ilustres, nos ricos e poderosos reduzidos à extrema miséria, em filósofos proeminentes que morreram, cada qual com a sua pena. Ao encontrar Tirésias, pergunta-lhe qual é a melhor maneira de viver e ouve a seguinte resposta: “A melhor vida, a mais sábia vida, é a do homem comum. (...) despreze os silogismos de seus filósofos, trate tudo isso como conversa fiada. Ria de tudo e não se apegue seriamente a nada.”

Em Amigos da Mentira, Luciano ridiculariza a tendência dos filósofos em acreditar no sobrenatural, e conta a história de um mago egípcio capaz de dar vida a objetos inanimados por fórmulas mágicas, e transforma uma vassoura em criado. Essa obra inspirou o poema de Goethe O Aprendiz de Feiticeiro, publicado em 1797, e Paul Dukas compôs, em 1897, um poema sinfônico com o mesmo título, que foi retomado em uma famosa sequência do filme Fantasia de Walt Disney, lançado em 1940.

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Luciano nasceu em Samósata (aprox. 120-180 d.C.), uma cidade do Império Romano situada no sul da atual Síria, à margem do Eufrates, que foi a capital de um pequeno reino helenístico chamado Commagene até que os romanos a conquistaram em 72 d.C. De origem assíria semí­tica, sua língua nativa era o siríaco, um dialeto do aramaico, que era falado em toda a Mesopotâmia e na Arábia Oriental. Embora nascido numa província do Império Romano, escreveu em grego em vez do latim imperial, pois o grego manteve seu status de principal língua literária do mundo durante séculos após o declínio das potências helenísticas e a ascensão do Império Romano.

O pouco que se sabe da vida de Luciano é proveniente de pistas e re­ve­lações deixadas em seus próprios escritos, notadamente em O Sonho, A Dupla Acusação, O Pescador e Apologia.. Aos 14 anos, ele começou a trabalhar como aprendiz de escultor no atelier de seu tio, mas no início de seu aprendizado quebrou um pedaço de mármore ao golpeá-lo com o cinzel. Seu tio deu-lhe uma surra, fazendo com que o jovem saísse furioso da oficina e vagasse pelas ruas da cidade, pensando muito sobre o que queria fazer da vida. Como Luciano disse mais tarde em um ensaio, naquela noite teve um sonho em que duas mulheres brigavam por ele: uma rude trabalhadora coberta de pó de pedra que o incitava a trabalhar no atelier, a outra uma senhora elegantemente vestida com um manto luxuoso, que lhe descreveu os benefícios de uma sólida educação clássica. Luciano escolheu esta última. Depois disso, deixou seus pais para aprender grego e seguir os ensinamentos dados nas escolas de retórica da Jônia.

Concluída a sua formação, foi advogado em Antióquia entre 162 e 165, trabalho que parece não o ter agradado, pois começou a viajar pelas províncias romanas da Ásia Menor até à Gália, onde teria enriquecido consideravelmente graças aos seus talentos como retórico e ao ensino desta arte, ocupação muito bem remunerada. Tornou-se, portanto, um sofista iti­ne­ran­te e, depois disso foi para Atenas, uma nova etapa que marcou uma viragem na sua carreira ao abandonar a sofística e tornar-se panfletário, especializando-se no gênero ao qual de­ve a maior parte da sua fama, o diálogo satírico. Por fim, estabeleceu-se no Egito, onde o imperador Marco Aurélio lhe atribuiu importantes funções administrativas e judiciais. Provavelmente foi em Alexandria que ele morreu, nos primeiros anos do reinado de Cômodo.

O SONHO ou O GALO 
e outros escritos de Luciano de Samósata 

Icaromenipo ou Viagem às Nuvens,  Elogio da Mosca, Caronte ou Os Contempladores, Menipo ou Necromancia, Os Amigos da Mentira ou O Incrédulo.
Versão de Bira Câmara, a partir da tradução francesa de Emile Chambry. Edição ilustrada, 138 páginas.
PEDIDOS: jornalivros@gmail.com

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