Pouca gente sabe que o modelo comunista implantado no século vinte na Rússia, na China e em Cuba já havia sido experimentado no século XI na própria China, e fracassou da mesma forma.
Texto de Bira Câmara
Desde a antiguidade o sonho de acabar com a miséria, de estabelecer a igualdade entre os homens e construir uma sociedade mais justa, tem inspirado a mente dos pensadores a buscar fórmulas para concretizá-lo. E estas fórmulas invariavelmente fracassam quando colocadas em prática porque deixam de levar em conta que as desigualdades sociais, a pobreza, a concentração de renda não são produto somente de uma sociedade doente, mas do egoísmo, da cobiça, do amor ao luxo e aos prazeres, que são inerentes à natureza humana. A solução parece simples: mudem-se os homens e a sociedade mudará. Sem isso, qualquer transformação resultará em regimes tirânicos e na supressão das liberdades individuais, como a história o demonstra. Não há como mudar a natureza humana por leis ou decretos.
A utopia comunista ainda é, para muita gente, a única solução para todos os males da humanidade e nem mesmo o fracasso econômico dos países que a colocaram literalmente em prática desencoraja seus crentes. Uma coisa não pode ser negada nem pelo esquerdista mais fanático: o socialismo não deu certo em lugar algum e em tempo algum. É um fato e, em vão, os adeptos das ideias coletivistas tentam explicar este fracasso.
Os teóricos do socialismo costumam buscar suas origens na antiguidade, principalmente em Platão, na “República”, que contém o embrião de algumas de suas ideias mais caras sobre o trabalho e a propriedade. Mas se esquecem de que esta república só existiu na imaginação do filósofo, que prevê no mesmo livro a ruína inevitável de seu sistema se viesse a cair nas mãos da democracia! A constituição de Esparta com sua comunidade de bens, as leis agrárias levadas a Roma pelos Gracos, fornecem também argumentos históricos lembrados por eles. Mas se tivessem a preocupação com a verdade, acrescentariam que, em Esparta, a igualdade dos bens teve curta duração e que, para alguns milhares de cidadãos livres proprietários-socialistas, havia mais de cem mil escravos, descartáveis à vontade e que em Roma, as leis agrárias não puderam jamais ser aplicadas e se tornaram a causa de longos anos de anarquia.
Diz Will Durant que «por algum tempo o Partido Comunista que governou a Rússia após a revolução de 1917 assumiu uma forma que lembrava estranhamente a República de Platão». (*) Na Itália existiu durante algum tempo uma comunidade pitagórica comunista e vegetariana, inspirada na mesma que dominara uma das colônias gregas.
Pouca gente sabe que o modelo comunista implantado no século vinte na Rússia, na China e em Cuba já havia sido experimentado no século XI na própria China, e também não deu certo. O reformador que logrou essa proeza, Wan-Ngan-Ché (1019-1086), realizou de modo completo o coletivismo da produção agrária, estendendo-o para todas as indústrias, de modo a não deixar subsistir a propriedade individual e até a impedir o enriquecimento de todo cidadão.
Nesta época existiam na China seitas anarquistas ou niilistas, nascidas em meio ao caos reinante no império, que se propunham a destruir o edifício social. «A sociedade, diziam eles, baseia-se na lei, que não é senão injustiça e sofisma, sobre a propriedade, que não é senão roubo e extorsão, sobre a religião, que não passa de uma mentira, sobre a força, que não é senão tirania».
Estes niilistas queriam destruir tudo, para construir um novo edifício social. Suas ideias seduziram tanta gente que eles se tornaram uma ameaça à estabilidade do império chinês. Aterrorizados pela perspectiva da ruína social, pelo aumento da miséria, da fome que se espalhava pelas províncias assoladas por uma seca terrível e por terremotos, as classes dominantes e o próprio imperador curvaram-se às ideias socialistas de Wan-Ngan-Ché e concordaram em colocá-las em prática na íntegra. A realidade era tão assustadora que até a implantação de um sistema jamais experimentado era preferível a ela.
Nomeado ministro com plenos poderes pelo imperador Chen-Tsung, Wan era um homem de vasta cultura, extraordinária eloquência e dotado daquela qualidade que decora as paredes do inferno: tinha boas intenções. O reformador proclamou o Estado soberano, proprietário, capitalista e gerente das indústrias, e que toda a produção seria distribuída aos habitantes na medida das necessidades de cada um. Lançou um imposto especial aos ricos, calculado de forma que num prazo de cinco anos nada lhes restasse. Os magistrados determinavam, sem apelação, quais os ricos e quais os pobres. Toda a colheita era estocada em grandes celeiros mantidos pelo Estado e, quando havia escassez de alimentos ou carestia numa determinada província, o que sobrava nos distritos mais favorecidos era escoado para lá. A riqueza, causa da infelicidade geral, precisava ser eliminada e também de impedida de se reconstituir; se o comércio, os bancos, a indústria e a usura criam a riqueza, Wan-Ngan-Ché suprimiu-os e deu ao Estado o seu monopólio. O lucro seria repartido por milhares de mãos, pois, como o Estado representava todos os seus habitantes, cada um teria direito a uma parte nesta propriedade coletiva.
O sistema parecia perfeito, em teoria: «ninguém seria rico, mas também não seria pobre; sendo todos iguais, o ódio, a inveja, a cobiça, as más ações desapareceriam como por encanto e os princípios de justiça impor-se-iam naturalmente num império regenerado.» Só tinham a perder com isso, os usurários, os capitalistas, os que vivem das desgraças públicas e à custa da exploração dos trabalhadores.
Este discurso não parece familiar, mesmo nos dias atuais?
O reformador chinês teve quinze anos para implantar seu modelo, com plenos poderes, e foi saudado no início por um concerto de aplausos e admiração geral. Como bom líder de seita, tinha um batalhão de seguidores que o idolatravam, seduzidos pelo seu discurso, pela sua ousadia, inteligência, coragem e tenacidade. Wan-Ngan-Ché colocou-os em todos os cargos importantes para fazer seu plano funcionar.
Mas logo começaram as ilusões. Das sementes que recebiam gratuitamente do Estado, os camponeses tiravam a parte necessária para alimentar a família, vendiam ou trocavam outra parte por produtos que lhe faltavam, e só o que sobrava era usado para o plantio. O resultado é que as colheitas eram ruins e os lavradores continuavam na miséria, que bem depressa se generalizou no império.
Embora diariamente os resultados desmentissem as esperanças do povo, o governo insistiu na experiência por quinze anos. Só com a morte do imperador, que permaneceu fiel ao seu ministro enquanto viveu, é que Wan-Ngan-Ché foi destituído do cargo. A imperatriz regente, assustada com os clamores gerais contra ele e desanimada pelos seus insucessos, substituiu-o pelo ministro anterior, que era o seu maior adversário e tratou logo de apagar todos os vestígios de seu sistema desmoronado.
Wang Ngan-Ché acreditou que a máquina estatal montada por ele seria capaz de proporcionar ao povo as dádivas da vida e torná-lo feliz, e que para atingir este objetivo bastaria que todos seguissem as regras invariáveis da retidão. Isso foi o mesmo que tentar mudar a natureza dos homens através de um decreto, além de revelar desconhecimento da natureza humana. Acreditar que Estado conseguiria, «por leis sábias e inflexíveis, determinar a forma de observar as regras da retidão» pressupunha ingenuamente que toda a população estava imbuída do espírito coletivo e não pensava apenas no próprio bem-estar.
A única voz que se levantou no império para combater suas reformas tinha sido a de Ssé-ma-Kuang, antigo ministro conservador, homem religioso, historiador erudito, poeta, preservador das tradições e igualmente bem intencionado. Tinha a seu favor, também, a sabedoria e não precisou conspirar para retomar seu cargo.
As reformas empreendidas durante quinze anos terminaram melancolicamente sem alcançarem as metas esperadas pelo seu mentor. Teve pelo menos o mérito de, tanto no seu início como no seu fim, ao contrário das revoluções coletivistas do século vinte, transcorrer sem derramamento de sangue ou tirania. Uma das causas do fracasso delas — apontada pelo historiador René Grousset — teria sido a corrupção dos próprios funcionários públicos encarregados de fazer o sistema funcionar. No passado como no presente, a verdade é que, quando se torna o único patrão e controla todos os meios de produção o Estado acaba, inevitavelmente, sendo mais nefasto que os “malvados” capitalistas...
Curiosamente a crítica de Aristóteles à República comunista platônica lembra a do ministro conservador chinês em relação às reformas que foram implantadas na China no século XI: «estas e muitas outras coisas foram várias vezes idealizadas no curso do tempo». O pessimismo de Aristóteles quanto à natureza humana o levava a acreditar que a comunhão de bens significaria a diminuição da responsabilidade, pois «se tudo pertence a todos, ninguém terá cuidado com coisa alguma». Além disso, com a abolição da propriedade e o desestímulo ao lucro, as pessoas se esquivariam do trabalho árduo; o sentimento de propriedade estimula a indústria, a agricultura e o cuidado com as coisas de modo geral. Assim, conforme Aristóteles, os inúmeros males da existência não são causados pela propriedade particular, mas derivam de outra fonte: a perversa natureza humana. «A ciência política não faz os homens e sim os toma tais quais são por sua própria natureza». (**) Uma lição que seria ignorada por todos os reformadores sociais ao longo da história...
* * *
Outra tentativa de implantar um modelo de administração coletivista, de cunho socialista, aconteceu no século dezessete, na colônia americana de Plymouth. Seus habitantes, «revolucionários puritanos exilados, trouxeram para a América as ideias sociais esplêndidas que os haviam tornado insuportáveis na Inglaterra, e tentaram construir seu paraíso coletivista no Novo Mundo. As terras eram propriedade comunitária, a divisão do trabalho era decidida em assembleia e a colheita se dividia igualitariamente entre todas as bocas. O sistema havia resultado em confusão geral, a lavoura não produzia o suficiente e aos poucos a miséria havia se transformado naturalmente em anarquia e ódio de todos contra todos.» (***)
A colônia só escapou do extermínio quando os colonos decidiram voltar ao antigo sistema de propriedade privada da terra. O resultado disso foi um surto de prosperidade que ajudou a fazer dos Estados Unidos o país mais rico do mundo.
Uma coisa é certa: se no mundo real as ideias coletivistas são um fiasco, nem por isso deixam de seduzir a mente dos intelectuais. A maior parte dos romances de ficção científica descreve paraísos socialistas, onde o ideal de justiça social, liberdade, igualdade e fraternidade foram alcançados. No fundo, isso não difere muito do milenarismo religioso; mas segundo a religião, o milênio, o paraíso, só pode ser alcançado mediante a regeneração moral e espiritual do indivíduo, sem o que uma sociedade perfeita jamais será alcançada. Essa questão já havia sido discutida no século XVIII por Goethe e Schiller, por ocasião da revolução francesa; Schiller a saudou como a grande redentora da humanidade, já Goethe, avesso à fúria destrutiva e niveladora da revolução, acreditava que só a transformação individual, uma nova ética, poderia levar a humanidade a uma era de harmonia social.
Robert Owen (1771-1858), um dos mais nobres reformadores sociais, acreditava — como Rousseau — que o homem é determinado pelo meio e que o caráter humano não é formado por si próprio, mas pelas condições de vida em que se desenvolve. Imbuído das mais nobres intenções e de sincero amor ao ser humano, criou na região de Indiana (Estados Unidos), em 1824, uma comunidade baseada na liberdade e igualdade, onde não havia exploração ou servidão. Owen tinha um profundo desejo de proporcionar felicidade ao próximo, além da fé na bondade da natureza humana. Mas o choque com a realidade levou-o a rever seus mais caros conceitos. Depois de árduos esforços, foi obrigado a reconhecer que uma comunidade desse tipo é inviável se antes não for transformada a moral geral.
A colônia foi à falência, pois grande número de desmotivados encostava o corpo e passava o trabalho aos outros, provocando brigas. A realidade mostrou-lhe o equívoco de sua crença de que a miséria humana é causada apenas pelas «más instituições» em que vivem os homens e que a bondade da natureza humana floresceria por si mesma quando essas instituições fossem aprimoradas. Se tivesse lido Aristóteles não amargaria tal decepção...
Em pleno século XXI, mesmo após o colapso dos países que adotaram o modelo coletivista, o ideal socialista continua vivo e permeia praticamente quase toda a produção cultural brasileira. Os seus simpatizantes não se convenceram do fracasso do comunismo e continuam, agora com novas armas, a sonhar com sua implantação. E o pior é que, na guerra cultural, os esquerdistas tomaram a dianteira e estão conseguindo calar quem se opõe a suas ideias. Por isso, mais do que nunca, é oportuno passar a limpo as lições da história, lembrando as palavras de Will Durant: “Aqueles que não sabem nada da história estão condenados para sempre a repeti-la.”
Toda tentativa de melhorar as estruturas da sociedade, proporcionar oportunidades iguais a todos os cidadãos, acabar com a miséria e as desigualdades sociais, não só é válida como necessária. O que é temerário é a ideia de colocar tudo abaixo para instaurar um regime que nunca deu certo em lugar algum.
NOTAS:
(*) Will Durant, Filosofia da Vida, pg. 67
(**) Aristóteles, Política, I, 10
(***) Olavo de Carvalho, Mais sábios que Deus, Diário do Comércio, 28 de novembro de 2005.
Um socialista chinês no século XI
Charles de Varigny
Brochura, 58 páginas, formato 11,5 X 18,5 cm., 2012. Tradução e prefácio de Bira Câmara. A edição traz, além do texto de Varigny, "A dinastia Song e o reformador Wang-Ngan-Ché", segundo o historiador René Grousset, extraído do Cap. XXI da Histoire de la Chine (1942), Les Song et le problème des réformes, de René Grousset
Pedidos: jornalivros@gmail.com
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