Rosaura, a enjeitada, um dos últimos livros de Bernardo, resgata seu passado estudantil, relembra os amigos e evoca um sentimento que resistiu ao tempo, atravessou os séculos, e chegou até nossos dias.
(Texto de Luciana Fátima)
Bernardo Guimarães alcançou imortalidade literária por trabalhos como A escrava Isaura, O seminarista e O garimpeiro, mas limitá-lo aos livros paradidáticos é reduzir sua magnitude para as nossas letras. O mineiro, nascido em Ouro Preto em 1825, produziu teatro (que não chegou a ser publicado), notável prosa regionalista, além de uma instigante obra poética.
Desta última, distinguem-se algumas peças pornográficas – isto é, as que sobreviveram, já que, por serem consideradas obscenas, muitas não foram publicadas na época –, como O elixir do Pajé e A origem do mênstruo. E criou ainda textos fantásticos, como A ilha maldita e a Dança dos ossos. Um de seus maiores feitos, contudo, foi apresentar a poesia bestialógica (ou pantagruélica) aos estudantes da Academia de Direito, em São Paulo – o que, de acordo com Haroldo de Campos, colocaria Bernardo, com seus versos nonsense de rimas perfeitas, entre os precursores do surrealismo brasileiro. Mas nada disso se compara à marca que o jovem escritor, juntamente com outros rapazes, deixariam na acanhada capital paulista do século XIX: a Sociedade Epicureia.
Os estudantes em São Paulo
Vamos retroceder um pouco para entender melhor o ambiente em que tudo aconteceu. Naquele tempo, quem quisesse estudar Direito e tivesse meios, deveria se deslocar até Portugal, mais especificamente Coimbra, pois não havia faculdades no Brasil. Foi apenas em 1827 que D. Pedro I assinou um decreto, instituindo os Cursos de Ciências Jurídicas e Sociais no país. O primeiro, no Convento de São Francisco, em São Paulo; e o outro instalado no Mosteiro de São Bento, em Olinda.
Acontece que, ao contrário do Rio de Janeiro – que concentrava todo o glamour da capital imperial –, São Paulo era praticamente uma vila provinciana; mas, em pouco tempo, com o fluxo de alunos e professores atraídos pela nova instituição, isso mudaria radicalmente. A cidade passou a ser o Burgo dos Estudantes e, a partir disso, surgiram restaurantes, bares, teatros, núcleos artísticos, e as famigeradas repúblicas.
Chácara dos Ingleses
Talvez a mais célebre das repúblicas de estudantes, a Chácara dos Ingleses ficava, como explicou Satã a Macário, na “entrada da cidade, à direita, defronte ao cemitério”, na Rua da Glória. Reza a lenda que ali se reuniu o triunvirato byroniano que entraria para a história literária de São Paulo.
Bernardo Guimarães, o mais velho dos três, chegou à Academia em 1847, assim como Aureliano Lessa – vindo de Diamantina. Álvares de Azevedo – que nasceu em São Paulo, mas cresceu no Rio de Janeiro – seria matriculado no ano seguinte, em 1848. Maneco de Azevedo, como os amigos o chamavam, “era um belo mocinho moreno, de pequena estatura, de fisionomia radiante e prazenteira, e fronte larga, onde fulgurava o gênio”, conforme descrição do próprio Bernardo.
Teria sido ali, sob o teto da Chácara dos Ingleses, que o grupo de jovens – cheios de spleen, cansados do marasmo do lugar, ávidos por diversão – criara a Sociedade Epicureia, uma espécie de sociedade secreta que ansiava por reproduzir os desvarios de Lord Byron, dos quais um dos mais ‘simples’ era beber vinho em taças feitas de crânio humano. Um dos membros da sociedade teria dito, certa vez:
“Eram diversos os pontos em que nos reuníamos: ora nos Ingleses, ora nalgum outro arrabalde da cidade. Uma vez estivemos encerrados 15 dias, em companhia de perdidos, cometendo, ao clarão de candeeiros, por isso que todas as janelas eram perfeitamente fechadas desde que entrávamos até sair, toda a sorte de desvarios que se podem conceber.”
Um retrato da inocência romântica
Apesar de todas as diabruras que os rapazes aprontavam em São Paulo – e que deixavam os moradores da pacata cidade ressabiados –, eles simultaneamente escreviam um importante capítulo da literatura nacional: foi nesse ambiente que nasceu boa parte do nosso Romantismo e Ultrarromantismo.
Toda a produção literária de Álvares de Azevedo foi escrita enquanto ele estudava as ciências jurídicas em São Paulo. Curso que, aliás, não chegou a concluir, devido a sua morte prematura, antes de iniciar o último ano, em 1852. Ele tinha apenas 20 anos de idade. Aureliano Lessa conseguiu se formar em Olinda, mas não chegou a ver seus poemas serem publicados, pois morreu aos 33 anos, em razão de complicações causadas pelo alcoolismo crônico. Da tríade poética, foi Bernardo Guimarães o mais longevo – morreu aos 58 – e, assim, o mais prolífero.
Rosaura, a Enjeitada
Bernardo Guimarães
276 páginas, formato 145 X 20 cm. Prefácio de Luciana Fátima
Bira Câmara Editor 2019
PEDIDOS:
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