O que pode trazer de novidade um livro escrito há um século atrás, sobre um tema tão controvertido e fascinante como a morte, que sempre alimentou especulações, e sobre o qual até hoje tanto os religiosos como os cientistas e filósofos jamais chegaram a um consenso?
Texto de Bira Câmara
Por certo esta obra não traz a palavra definitiva, a prova cabal da sobrevivência da alma, nem a resposta para o grande enigma da vida. Mas foi escrito por uma das mentes mais brilhantes que já se debruçaram sobre este assunto, pesquisando-o com imparcialidade e objetividade, sem resvalar para o misticismo. Maeterlinck, seu autor, um dos mais notáveis escritores do século vinte, prêmio Nobel de Literatura de 1911, além de ser um poeta aclamado, teatrólogo e ficcionista, também ficou conhecido pelos seus ensaios, onde a filosofia serena junta a graça da poesia e a precisão da linguagem. Sua prosa clara e harmoniosa não se limita apenas à forma, mas é permeada de pensamentos singularmente profundos. A morte, um tema solene, eterno e sempre inesgotável, foi investigado por ele com rara sensibilidade e aguçada visão.
Maeterlinck não acreditava em Deus, e as religiões — o catolicismo mais do que as outras —, lhe pareciam concepções pueris e obsoletas. Quando se propôs a pesquisar a morte tinha a pretensão de coletar material para substituí-las por um edifício futuro mais sólido, que ele denominava neo teosofia ou neo espiritismo. Reconhece que uma tarefa de tal magnitude não seria possível em apenas trinta anos de pesquisa, que era na época o quanto já durava as investigações psíquicas desde o seu início.
No final do século dezenove e início do vinte, a teosofia e o espiritismo despontavam como pioneiros neste campo, e suas teorias seduziram muitos escritores e artistas. Se tivesse nascido nos dias de hoje, com certeza não seria nos centros espíritas que Maeterlinck concentraria sua atenção, mas nos hospitais, a entrevistar pacientes que sofreram morte clínica e retornaram contando experiências pós-vida. Ele seria mais um a engrossar o time de pesquisadores como Elizabeth Kubler-Ross, Raymond Moody, Brian Weiss, Pierre Weill, Eliezer Mendes, e tantos outros.
A Morte foi publicada em 1913, e esta obra completa-se com outra, que saiu quatro anos depois, L’Hôte Inconnu, onde Maeterlinck investiga os fenômenos paranormais, as artes divinatórias e outros temas insólitos. Mas não parou por aí; em 1921 publica Le Grand Secret, um exaustivo estudo sobre o espiritismo, e em 1941 L’Autre Monde ou Le Cadran Stellaire, onde expõe seus pensamentos filosóficos íntimos a respeito de Deus, do Infinito, da Eternidade, dos destinos humanos, de outros mundos e da vida pré-natal, entre outros temas correlatos.
Apesar de oriundo de família católica e conservadora, considerava sem nenhum valor o conceito de imortalidade da alma segundo o catolicismo, junto com outros dogmas como a ressurreição no dia do juízo final, a noção de Céu e Inferno, recompensa por boas ações e castigo pelos pecados cometidos nesta vida. Por outro lado, via com simpatia a doutrina das vidas sucessivas e a ideia do espírito se purificar e se elevar gradualmente.
Maeterlinck participou de sessões espíritas sob a supervisão de Sir Oliver Lodge e William James |
Ao analisar com condescendência desdenhosa um argumento de Pascal, tenta destruir em algumas páginas a crença na existência de Deus. Cético quanto às religiões, Maeterlinck no entanto não esconde sua simpatia pelas hipóteses teosóficas e neo espíritas, e confessa que «são as únicas que se pode discutir seriamente». Mas apesar de considerar a reencarnação como a mais plausível e racional das teorias religiosas, algumas linhas depois reconhece não haver a menor prova de tão bela teoria e que esta doutrina se limita a afirmações que flutuam no vazio, apoiada apenas por argumentos sentimentais.
Maeterlinck pesquisou cuidadosamente as comunicações espíritas e os fenômenos psíquicos. Não só leu a respeito de espiritismo, teosofia e religiões orientais, como frequentou sessões, observou médiuns no seu trabalho e conversou com entidades ditas desencarnadas. Embora tenha deparado com fatos estranhos e fenômenos para os quais não tinha explicação, ainda assim não se convenceu que estes fossem produzidos por entidades do além, ou de alguma outra dimensão. Nas suas palavras: são prodigiosos incidentes de fronteira; mas não se pode afirmar que a fronteira (da morte) tenha sido violada. As sessões que assistiu, com médiuns conceituados e sob a supervisão de pesquisadores idôneos como Sir Oliver Lodge e William James, pareceram-lhe manifestações incoerentes e precárias de um estado transitório, ou seja: o médium captaria uma «espécie de memória desarraigada ou truncada» que depois de nossa morte permaneceria num vácuo por algumas semanas ou até anos. Sem duvidar da veracidade dos fatos relatados na literatura «além-túmulo», chegou às mesmas conclusões que as pessoas de bom senso chegam, quando se debruçam no seu exame: os mortos, se sobrevivem, pouca coisa tem a ensinar-nos; ou porque, no momento em que nos podem falar, não tenham ainda nada que nos dizer; ou porque, no momento, em que teriam alguma coisa a revelar-nos, já o não podem falar, e se afastam para sempre, perdendo-nos de vista na imensidade que eles exploram. Isso explicaria a inconsistência e, mesmo, incoerência da maioria das obras psicografadas que circulam por aí, bem como a escassez de informações úteis ou de caráter científico e filosófico nelas. Estes livros, mesmo quando atribuídos a grandes escritores ou cientistas desencarnados, quase sempre, não trazem nada mais do que piedosas exortações moralistas e nenhuma contribuição para o progresso científico da humanidade. O mesmo se pode dizer das pinturas mediúnicas, que (quando muito) guardam vaga semelhança dos artistas quando vivos. A partir destas produções seríamos forçados a reconhecer que os mesmos «involuem» e se tornam incapazes de passar para a tela as imagens que vislumbram no outro lado do mistério...
Leonora Piper, célebre médium observada por Maeterlinck |
Não só as conclusões tiradas por Maeterlinck continuam atuais, como também as muitas perguntas que fez sobre o fenômeno das comunicações mediúnicas. De lá para cá a quantidade de literatura psicografada aumentou consideravelmente no mundo inteiro, embora a sua qualidade não tenha melhorado muito. A grande maioria dos romances psicografados pelos «espíritos» dos grandes mestres da literatura está recheada de sentimentalismo e pieguice; algumas obras, como as assinadas por Emmanuel, curiosamente rescendem forte religiosidade católica, lembrando mesmo as descrições do Céu e do Purgatório católico, só que com espíritos de luz substituindo as figuras angélicas e espíritos recalcitrantes na prática do mal no lugar dos velhos demônios.
Muitas das dúvidas e questionamentos levantados por Maeterlinck ainda continuam atuais, e os espíritos não conseguem dar-lhes respostas satisfatórias: «porque nos falam eles tão raramente do futuro, e por que razões, quando a isso se aventuram, se enganam com uma regularidade desalentadora?» Basta um exame superficial sobre a vasta literatura mediúnica para constatar isso. Quantos livros não foram escritos na segunda metade do século vinte, endossando profecias de catástrofes, hecatombes apocalípticas, desastres de dimensões globais que deveriam acontecer antes da virada do século? Quanto à moralidade, a civilização parece seguir um caminho diametralmente oposto ao anunciado pelos mestres espirituais e a humanidade parece retroceder celeremente rumo à barbárie, sem dar sinais de evolução.
A Morte deixa mais perguntas no ar do que respostas, mas se não levanta em definitivo o véu de mistério que a encobre, nos conduz através de serenas e profundas análises a uma reflexão sobre ela. Ao estabelecer a impossibilidade da aniquilação total e concluir pela certeza da sobrevivência da alma, Maeterlinck deixa ao leitor uma mensagem final consoladora e positiva.
A Morte
Mauríce Maeterlinck
Bira Câmara Editor, 2013. Brochura, 203 páginas, formato 13, 5 X 20 cm. Tradução portuguesa de Cândido de Figueiredo, revista e atualizada. Prefácio e nota biográfica de Maeterlinck por Bira Câmara.
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