sexta-feira, 9 de abril de 2021

Dalmo, um livro esquecido que merece ser redescoberto

Muitas obras publicadas no século XIX jamais foram reeditadas, algumas inexplicavelmente, como é o caso do romance de Luiz Ramos Figueira, Dalmo ou Mistérios da Noite.

Texto de Bira Câmara

Quando este romance foi publicado em 1863, o autor ainda cursava o 3° ano do curso de Direito, em São Paulo, e tinha apenas 20 anos de idade. Para um autor que estreava nas letras, a re­cepção do público e da crítica foi das mais positivas. Dalmo recebeu elogios até de Machado de Assis, que assim se referiu ao romance: 

“Em boa justiça devem-se louvores ao Sr. Figueira. Se a sua obra acusa descuidos, revela qualidade de imaginação e de apreciação; há nela muitas belezas derramadas por muitas pá­ginas. Uma boa crítica não pode deixar de acolher a obra do Sr. Figueira como um presente que promete outros muitos, e a isso fica virtualmente empraza­do o leitor.” (1)

Já o crítico literário Pessanha Póvoa não lhe poupou elogios e deixou registrado que o próprio José de Alencar “se fosse vivo apertaria a mão de seu autor”. Ao contrário de outros autores deste mesmo período que, fascinados pela obra de Álvares de Azevedo tentaram repetir sem sucesso a fórmula de Noite na Taverna, Figueira conseguiu produzir um livro no mínimo original, e não se limitou a fazer uma mera imitação do Byron brasileiro.

Póvoa não só saudou Figueira como “um talento feito”, como observou que ele “não parodiou nem parafraseou a Noite da Taverna de A. Azevedo; foi além, e o que lhe honra os seus talentos é a firmeza descritiva, a sua originalidade.” (2)

O crítico Mário da Silva Brito classificou todos os prosadores românticos brasileiros como “ficcionistas superficiais e, muitos, fúteis e incon­sequentes”, carecendo “de artifício, da malícia que preside à construção técnica da ficção”. (3) No entanto, em nossa modesta opinião, Dalmo não se enquadra inteiramente nesta última carência. Claro, há nele alguns vícios da escola romântica como o sentimentalismo exagerado e a exuberância de emoções e de linguagem. Mas para os padrões literários da época, Dalmo é uma peça surpreendente “enxuta”. A narrativa de Figueira flui com naturalidade e os diálogos na maioria con­cisos, breves, não caem no arti­ficialismo discursivo dos imitadores de Azevedo, que abusaram das citações e paráfrases.

Antes da publicação de Dalmo, outro estudante do 3° ano do curso de Direito, em São Paulo, Theodo­miro Alves Pereira, também lançara um romance — Gennesco (1861) — conside­rado pela crítica como mera imitação de Noite na Taverna. Neste mesmo ano saiu no Correio Paulis­tano o folhetim de Fagundes Varella, Ruínas da Glória; em 1862 Franklin Távora publicou Trindade Maldita. Nenhuma dessas produções ficou para a posteridade, embora Edgard Cavalheiro tenha reconhecido o conto de Varella como “a mais importante e bem realizada” imitação, embora longe de qualquer comparação com a obra de Azevedo. Já o romance de Theo­­do­miro foi im­pie­­do­sa­men­te des­­qua­li­ficado por Pes­­sanha Pó­voa, que sentenciou: “Gen­nesco, se não fosse uma blasfêmia, seria uma pes­te literária”.

Aparentemente, apenas no meio acadêmico, principalmente entre os byro­nianos de seu tempo, Gen­nesco gozou de alguma celebridade. No célebre episódio da Rainha dos Mortos — segundo Pires de Al­meida — um estudante, à noite, no cemitério “leu um trecho do Gennesco (...) e outro “um fragmento do Dalmo de Ramos Figueira”. (4)

De todas essas obras, apenas Ruí­nas da Glória foi novamente pu­bli­ca­da algumas vezes, o que é uma lástima. No caso de Dalmo, chega a ser inexplicável não ter sido ree­ditada, assim como o esquecimento em que caiu. Teria sido porque Figueira, depois de ser saudado como um talento emergente, nunca conseguiu escrever outra obra do mesmo nível?

A publicação de Dalmo deixou no ar a expectativa de que novos romances poderiam sair da pena de seu autor, mas isso não aconteceu, infelizmente...

Das obras que vieram na esteira de Noite na Taverna, esta foi a mais bem acabada como obra de ficção e também a mais original. Não chega a se enquadrar no gênero fantástico, à moda de Hoffmann, e tem um tom pessimista, amargo, e um clima fúnebre, mas sem o cinismo e a descrença na possibilidade de redenção humana, que a maioria dos prosadores ultrarro­mânticos afetava.

Dalmo, o personagem-título, representa uma luta nas trevas, como observou Póvoa: “um homem contra uma sociedade, uma ideia contra uma instituição, um Esopo impossível.” (5) Nas suas caminhadas solitárias pela cidade, durante a madrugada, ele tem acesso aos mistérios som­brios e aos “crimes que o confessionário oculta.” Ele é o justiceiro, o mediador entre o bem e o mal, a virtude e o vício.

O mal está representado na trama por um cônego devasso e ines­crupuloso, seduzindo a pura e inocente donzela, bem ao gosto da literatura gótica. Aqui, com certeza temos ecos de Hoffmann e Ann Rad­cliffe. A paixão desenfreada do cônego culmina em desfecho trágico e toda a trama é permeada de um clima mórbido.

Para os ultrarromânticos, Eros e Tanatos andavam de mãos juntas; na verdade, como bem observou Edgard Cavalheiro, “a morte era a grande mu­sa, a namorada de todos eles”. A rigor, este é o principal ponto em comum da obra de Figueira com os byronianos: o amor resulta em fatalidade e morte, a vida corre de braço dado com a desgraça.

O papel de vilão, representado por um padre, não é ocasional; o meio acadêmico onde o autor vivia quando escreveu Dalmo não só idolatrava Byron como respirava uma atmosfera carregada de ventos revolucionários, liberais, republicanos, e, portanto, anticlericais. Os ideais maçônicos da Bucha faziam a cabeça dos estudantes do curso de Direito e alimentavam este sentimento anticlerical. Mas Figueira não caiu na tentação do discurso panfletário, co­mo fez Theo­domiro em algumas passagens de Gennesco.

Ao contrário de Azevedo e Va­rella, o autor de Dalmo não tem para com a Paulicéia o mesmo sentimento de tédio e desalento. Em mais de uma passagem ele descreve a paisagem paulistana com lirismo e ternura, como abaixo:

“Noites de Piratininga! Como sabeis influir a magia desses luares, dessas cortinas de névoas nas montanhas, nas palmeiras, nos lagos e ilhas da Várzea! Quanta saudade, quanta poesia, quão doce cogitar despertais no peito que ama e sofre! Amo-vos, quer na claridade sem calor, quer na meia escuridão em que vos escondeis quan­do o firma­mento se recama de estrelas cintil­antes e o astro generoso não quer empalidecer os brilhos de suas filhas!”

Em outra passagem enaltece a beleza da cidade, comparando-a a Sevilha e Granada. Sobre as paulistanas, ele é mais comedido: 

“À noite, sim, quando vagueiam pelas ruas mal alumiadas esses vultos que deixam re­luzir no escuro uns olhos pretos por entre as rendas da mantilha; essas incógnitas caminhei­ras das desoras, que escondem na baeta um se­gredo de ciúme, ódio e de amor. Mal desses corações se tivessem de pulsar a descoberto!”

Impressões bem distintas das re­gistradas por Azevedo em Noite na Ta­verna sobre a cidade e as mulheres pau­listanas.

Mesmo o clima soturno das noites, o frio das madrugadas no inverno, a garoa, a névoa, sempre são descritos com simpatia quase ufanista.

Neste drama fúnebre cada personagem tem suas singularidades, seus mistérios que vão sendo aos poucos revelados. O sobrenatural intervém mui­to pouco, como se o autor se esquivasse de fórmulas fáceis para eletrizar o leitor em sacrifício da verossimilhança.

Em suma, qualquer espírito bem educado e com sensibilidade literária há de reconhecer as qualidades deste romance e concordar que ele merecia melhor sorte do que ficar sepultado no esquecimento durante mais de um século.


NOTAS:

(1) Machado de Assis, Crônicas,1862-1863, O Futuro, RJ.

(2) Pessanha Póvoa, Annos Acadêmicos, pág. 78.

(3) in Nota Intro­du­tória de “O Conto Romântico Brasileiro”, pág. 5.

(4) Pires de Al­meida, A Escola Byroniana no Brasil, pág. 217.

(5) Pessanha Póvoa, idem, pág. 77.

 

Dalmo ou Mistérios da Noite

Luiz Ramos Figueira

Brochura, 145 páginas, formato 14 x 20 cm.

PEDIDOS:

jornalivros@gmail.com


NOTA BIOGRÁFICA

Pouco sabemos sobre o autor e de outras produções de sua lavra. O Dicionário Bibliográfico Brasileiro de Sacramento Blake registra apenas que nasceu em Angra dos Reis, Rio de Janeiro, pelo ano de 1843 e faleceu em Gua­raqueçaba, vila do Paraná, a 27 de setembro de 1894. Bacharel em letras pelo colégio Pedro II e bacharel em Direito pela faculdade de S. Paulo, foi promotor público na comarca de Paranaguá e deputado provincial no Rio de Janeiro e no Paraná. Fundou e redigiu a Imprensa Acadêmica, jornal comercial, agrícola, noticioso e literário dos estudantes de S. Paulo (1864-1865). Deixou a redação após sua formatura; mas a publicação continuou até 1870. Além de Dalmo, escreveu também Amores de um voluntário: romance da atualidade (1868), dedicado a José de Alencar.



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